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A SOCIEDADE EGBE ÒRUN DOS ABIKÜ, AS CRIANCAS

NASCEM PARA MORRER VARIAS VEZES *

Pierre Verger

Universidade Federal da Bahia

Se uma mulher, em país iorubá, dá a luz uma série de criancas natimortas

ou mortas em baixa idade, a tradicão reza que não se trata da vinda

ao mundo de várias criancas diferentes, mas de diversas aparicões do

mesmo ser maléfico chamado abíkú (nascer-morrer) que se julga vir ao

mundo por um breve momento para voltar ao país dos mortos, òrun (o

céu), várias vezes ( 1 1.

Ele passa assim seu tempo a ir e voltar do céu para o mundo sem jamais

permanecer aqui por muito tempo, para grande desespero de seus

pais, desejosos de ter numerosos filhos vivos, para assegurar a continuidade

da família sobre a terra.

Esta crenca se encontra entre os akan, (2) onde a mãe é chamada

awomawu (ela bota os filhos no mundo para a morte). Os ibo chamam os

abíkú deogbanje, os haucás de danwabi e os fanti, kossamah (3). Sua pre-

- senca entre os Mossi foi estudada por M. Houis (4).

Encontramos informacões a respeito dos àbikú em algumas histórias

(itan) de Ifá, sistema de advinhacão dos iorubá, praticada pelos babalaôs

(pai-do-segredo) que transmitem de geracão em geracão um enorme

"corpus" de histórias tradicionais, classificadas nos duzentos e cinqüenta

e seis odu ou sinaisde Ifá (5). Oito deste itan são dados no fim destes artigo,

nos seus textos originais iorubá, com a sua traducão para o português.

Estas histórias mostram que os abíkú ou eméré (112) (6) formam

sociedades no céu (egbé òrun), presididas por lyajansa (a mãe-se-bate-ecorre)

para os meninos (V 11 112 e 76) e olókó (chefe da reunião) para as

meninas (VI3 e V111/77), mas é Aláwaiyé (Rei de Awayé) (V11/17) que

as levou ao mundo pela primeira vez na sua cidade de Awaiyé (V11118).

Lá se encontra a floresta sagrada dos abikú (V11/44), aondé os pais de

ábíkú vão fazer oferendas para que eles fiquem no mundo (VI 1/45,52,54.).

Quando eles vêm do céu para a terra, os ahikú passam os limites do

céu diante do guardião da porta, o aduaneiro do céu onjbodé òrun (1/5),

seus companheiros vão com ele até o local onde eles se dizem até logo

(I 11/9). Os que partem declaram o tempo que tencionam ficar no mundo

e o que farão. Se prometem a seus companheiros que não ficarão ausentes,

essas criancas, apesar de todos os esforcos de seus pais, retornarão,

para encontrar seus amigos no céu (V/7,9).

Os abíkú podem ficar no mundo por períodos mais ou menos longos.

Um àbíkú menina chamada "A-morte-os-puniu" declara diante de

oníbodé òrun (116,161 que nada do que os seus pais facam será capaz de

retê-la no mundo, nem presentes em dinheiro, (117) nem roupas que Ihes

oferecam, (119) nem todas as coisas que eles gostariam de fazer por ela

(111 1) atrairiam os seus olhares nem lhe agradariam (1112).

Um àbíkú menino, chamado Ilere, diz que recusará todo alimento

(1117) e todas as coisas (11/10) que lhe queiram dar no mundo. Ele aceitará

tudo isto no céu.

Quando Aláwaiyé levou duzentos e oitenta ibíkú ao mundo pela primeira

vez, cada um deles tinha declarado, ao passar a barreira do céu, o

tempo que iria ficar no mundo (VI I 4, 10). Um deles se propunha a voltar

ao céu assim que tivesse visto sua mãe; (V11/10) um outro, que iria esperar

até o dia em que seus pais decidissem que ele se casasse (VI 111 1 );

um outro, que retornaria ao céu, quando seus pais concebessem um novo

filho (VI 1/15), um ainda não esperaria mais do que o dia em que comecasse

a andar (V11/16).

Outros prometem a lyàjanjasà, que está chefiando a sua sociedade

no céu (V 11 1/3), respectivamente, ficar no mundo sete dias, (V 1 1 111 9 ou

até o momento em que comecasse a andar (VI 11/23) ou quando ele comecasse

a se arrastar pelo chão (V I1 1/23), ou quando comecasse a ter dentes

(V111124) ou ficar em pé (V111125).

Nossas histórias de Ifá nos dizem que oferendas feitas com conhecimento

de causa são capazes de reter no mundo esses abíkú e de Ihes fazer

esquecer suas promessas de volta, rompendo assim o ciclo de suas

idas e vindas constantes entre o céu e a terra, porque, uma vez que o

tempo marcado para a volta já tenha passado, seus companheiros se

arriscam a perder o poder sobre eles.

E assim que nessas quatro histórias (I, I I I, I V e V) encontramos oferendas

que comportam um tronco de bananeira acompanhado de diversas

outras coisas. Um só dos casos narrados, o terceiro, explica a razão dessas

oferendas:

"Um caçador que estava à espreita ( 1 1 1/3), no cruzamento dos caminhos

dos abl'kú, escutou quais eram as promessas feitas por três abíkú

quanto a época do seu retorno ao céu.

"Um deles promete que deixará o mundo assim que o fogo utilizado

por sua mãe, para preparar sua papa de legumes, se apague por falta de

combustível (II1/11). O segundo esperará que o pano que sua mãe utilizar,

para carregá-lo nas costas se rasgue ( 1 1111 7). A terceia (porque é uma

rrienina abíkú) esperará, para morrer, o dia em que seus pais lhe digam

que é tempo dela se casar e ir morar com seu esposo ( 1 11/22).

"O cacador vai visitar as três mães no momento em que elas estão

dando a luz seus filhos abíkú (111126) e aconselha à primeira que não deixe

se queimar inteiramente a lenha sob o pote que cozinha os legumes

que ela prepara para seu filho ( 1 11/28); a segunda que não deixe se rasgar

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o pano que ela usar para carregar seu filho nas costas, que utilize um pano

de qualidade diferente (dos que se usam geralmente para este fim);

( 1 11/32); ele recomenda, enfim, a terceira, de não especificar, quando

chegar a hora, qual será o dia em que sua filha deverá ir para acasa do seu

marido (1 11/33).

As três mães vão, então, consultar a sorte, Ifá, que Ihes recomenda

que facam respectivamente as oferendas de um tronco de bananeira, de

uma cabra e de um galo, impedindo, por meio deste subterfúgio, que os

três ibíkú possam manter seu compromisso. Porque, se a primeira instala

um tronco de bananeira no fogo, destinado a cozinhar a papa do seu filho,

antes que ele se apague ( 1 11/43), o tronco de bananeira, cheio de seiva

e esponjoso, não pode queimar, e o abíkú, vendo uma acha de lenha

não consumida pelo fogo ( 1 1 1/47), diz que o momento de sua partida ainda

não é chegado. A pele de cabra oferecida pela segunda serve para reforcar

o pano que ela usa para levar seu filho nas costas ( 1 11/52); a crianca

àbíkú não vai achar nunca que esse pano se rasgou e não vai poder

manter sua promessa. Não se sabe bem o porque do oferecimento de um

galo, mas a história conta que, quando chegou a hora de dizer à filha

uma moça, que ela deveria ir para a casa de seu marido (1 11/55), os pais

não lhe disseram nada e a enviaram bruscamente para casa dele.

Nossos três abíkú não podem mais manter a promessa que fizeram,

porque as circunstâncias que devem anunciar sua partida não se realizaram

tais como eles tinham previsto na sua declaração diante de oníbodé

bruna Estes três àbjkú não vão mais morrer. Eles seguiram um outro caminho

(I 11175,761.

Comentamos esta história com alguns detalhes porque ilustram bem

o mecanismo das oferendas e de sua funcão. ~ ã éo se u lado anedolíco

que nos interessa aquí, mas a tentativa de demonstração de que, em país

iorubá, a sorte pode ser modificada, numa certa medida, quando certos

segredos são conhecidos. No caso, as condicões nas quais os três abíkú

deixaram o mundo.

Esta noção sobre a importância de conhecer certos segredos é também

expressa na sétima história onde os abíkú combinam entre si, no

momento de sua chegada a Awayé (V11/18), preparar, cada um, quatro

vestimentas (de cor vermelha), assim como um lenço de cabeca e um boné

no valor de 1.400, cauris (búzios) para cada um. 0 s ab jkú declaram

que se alguém descobrir suas quizilas, quando eles chegarem ao mundo, e

o nome das vestes que eles combinaram fazer (V 11/22, 23), eles ficarão no

mundo.

E por isso que os babalaôs consultados (VI 1/34) prescrevem oferendas

desses objetos (V1 1/39, 41 1, a respeito dos quais os abíkú fizeram

uma combinacão (VI 1/42).

Essas oferendas são penduradas nas árvores da floresta sagrada dos

Ãbíku em Awaiyé (V1 1/46), acompanhadas de pratos de alimentos e doces

(V 11/52).

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Estas cerimônias serão feitas todos os anos pelos pais (V11/55), e

eles dancarão ao som dos tambores, cantando cancões onde falam du

"Camwood, da cor das roupas vermelhas feitas pelos ablkú, de lenços e

de bonés no valor de 1.400 caurís (búzios) cada um, afirmando, asssim,

ter conhecimento do pacto feito pelos àb&ú quando chegaram em

Awaiyé, e do seu compromisso de ficar no mundo, se os pais viessem a

saber da sua convenção. Nenhum abíkú, cujos pais fizeram estas cerimrinias,

deixará o mundo (V11168, 69) (7).

Tais oferendas são, com efeito, uma forma de expressão sem acompanhamento

de palavras articuladas; o discurso é substituído pela apresentacão

dos objetos testemunhas, provando que a oferenda conhece os

segredos, fazendo-o assim participar do pacto dos abíkú.

Entre as oferendasque os retêm aqui, em baixo, figuram, em primeiro

plano, as plantas litúrgicas. Cinco dentreelas são citadas nestas histórias:

Abíríkolo (Crotalaria lachnophera A. Rich, Papilionacaae).

Agídímagbayin (não identificada).

ldí (Terminalia ivorensis, A. Chev, Combretacae).

lja agborh (não identificada).

Lara pupa (R icinus communis Linn, Euphorbiaceae).

Citemos ainda duas plantas frequentemente utilizadas para reter os

abíkú e que não figuram nessas histórias:

Olobotuje (Jatropha curcas - LINN Euphorbiaceae).

Opá eméré (Waltheria americana LI NN, Sterculiaceae).

A oferta destas folhas constitui uma espécie de mensagem e é acompanhada

por encantamentos (ofó); os textos de algumas delas figuram

nos textos apresentados no fim deste artigo.

Resumamos aqui:

Ewé abíríkolo, insinkú òrun e pèhinda (Vl51, 53)

Folhas d'abiríkolo, coveiro do céu, voltai.

Ewé agidl'magbayin, Olorun máa ti 'kun, a o kú mó (I V121, 23)

Folha de agidímagbayin Olorum fecha a porta (do céu) para que não

morramos mais.

Ewé id í I'ori ki onà òrun tèmi o dí (V1126)

Folhas de idl: dizei que o caminho do céu está fechado para mim.

Ewé ijá agbonrín, não ande pelo longo caminho que conduz ao céu.

Ewé lara pupa ni osún awón àbíkú. (V1133, 34)

A folha de lara vermelha pe o cânhamo dos abíkú.

Olobotuje má jé ki mi bí àbíkú omo

olobotujé &b 17-teiKe parir filhos àbíkú

opá eméré ki pé t í f i kú, yio máa eu ni, nwon ni, nwon bá ríòpá eméré

Vara de eméré não os deixe morrer, isto Ihes agrada, ver a vara de eméré.

Notar-se-ão as açsociacões de som que intervêm em algumas dessas

f0rrnulas de encantamento tais como a última sílaba de ljá agbonrín e o

verbo rlh idl' é do mesmo modo associada ao verbo dí, fecha (o carninho

do céu), além disso, esta história faz parte do signo Òdíméji onde se

reencontra a mesma sílaba atuante; para a folha lara pupa, um jogo de

palavras é feito entre o nome da folha lara e l'ara, o corpo (da criança).

Em país iorubá, os pais, para proteger seus filhos àbíkú e tenta; retê-

los no mundo, podem se dedicar a certas práticas, tais como fazer incisões

(cortes) nas juntas da criança (VI 111 4) e aí esfregar um pó preto, feito

de folhas litúrgicas, queimadas para esse fim, ou ainda ligar à cintura

da criança um 6ndè (V1/20, 21 ), talismã feito desse mesmo pó negro,

contido num saquinho de couro.

A ação protetora buscada nas folhas, expressa nas fórmulas de encantamento,

é introduzida no corpo da criança por incisões e fricções, e

a parte do pó preto, contida no saquinho do òndè, representa uma mensagem

não verbal, uma espécie de apoio material e permanente da mensagem

dirigida pelos elementos protetores contra os elementos hostís, sendo

essa forma de expressão menos efêmera do que a palavra (8).

No canto da oitava história, são feitas alusões aos xaorôs, anéis providos

de guizo, usados nos tronozelos pelas crianças abikú, para afastar

os companheiros que tentam vir buscá-los (9) no mundo e lembrar-lhes

suas promessas (V I I 1/57, 64 I.

De fato, seus companheiros não aceitam assim tão facilmente a falt

a de palavra dos abíkú, retidos no mundo pelas oferendas, encantamentos

e talismãs preparados pelos pais, de acordo com o conselho dos babalaôs.

0 s membros da sociedade dos àbíkú, egbé ará òrun, vêm do céu residir

nos lugares pantanosos ( 1 1/28) ou nos regatos ( 1 1/46, V/20), donde

chamam as crianças que querem ficar no mundo. Vão também ao pé dos

muros (11/47), lá onde vão esvaziar as sujeiras (11148). Ficam nas salas onde

as pessoas se lavam (balùwe) no fundo das casas (I11/63), que são lugares

frescos, onde é enterrado iwo, a placenta dos recém-nascidos, colocadas

num vaso isásun, coberto de folhas de palmeira desfiadas, chamadas

mariwó e caurís (búzios). Isso se chama orisun, a arigem da criança, e

esse lugar é saudado com a seguinte frase: Baluwe, nlé o, o tó omo, at'idí

jegbin omc tuntun Olá, sala de banho, fonte de origem da criança, come

as sujeiras da criança recém-nascida), fórmula que, por um curioso resumo,

associa as noções de especulações mui respeitáveis sobre a origem

dos seres humanos às das funções orgânicas.

Nem sempre essas precauções e oferendas são suficientes para reter

as criancas abíkú sobre a terra. lyájanjasa é muitas vezes mais forte.

Ela não deixa agir o que as pessoas fazem para os reter (V I1 1/46, 47) e porá

a perder tudo o que as pessoas tiverem preparado (V11 1/48, 49). Contra

os ab/kú não há remédios. lyájanjasá os atrairá a forca para o céu

(V111/35, 69). Os corpos dos abíkú que morrem assim, são frequentemente

mutilados, a fim de que, dizem, eles percam seus atrativ.0~ e seus

companheiros no céu não queiram brincar com eles sobretudo para que

o espírito do àbíkú, maltratado deste modo, não deseje maisvir ao mundo.

142

Essas criancas abíkú recebem no seu nascimento, nomes particulares.

Damos no fim deste artigo uma relacão de alguns desses nomes acompanhados

de suas saudacões tradicionais. Eles podem ser classificados:

quer nomes que estabelecem sua condicão de abíkú (6, 7, 8, 18,36,

38); quer em nomes que Ihes aconselham ou Ihes suplicam que permaneçam

no mundo (2, 9, 11, 13, 14, 16, 17, 23,25, 26, 32, 33, 34, 30);quer

em indicacões de que as condicões para que o abikú volte não são favoráveis

(20, 21, 22, 27, 28, 29, 37, 39, 42); quer em promessas de bom tratamen

to, caso eles fiquem no mundo (5, 12, 15).

A freqüência com que se encontra, em país iorubá, esses nomes em

adultos ou velhilhos que gozam boa saúde, mostra que muitos abikú ficam

no mundo gracas, pensam as almas piedosas, a todas essas precauções,

à acão de Orúnmilà, e a intervenção dos babalaôs.

NOMES DADOS AOS ÃBíKÚ

Aiyédun - A vida é doce (NT)

Aiyédun, a vida é doce, venha conhecer nossa sociedade

Aiyélagbe - Nós ficamos no mundo

A iyélagbe, não parta, não se vá

A já - Cão

Cão, não quebre a corda, perdão, não se va

Ajéigbe - A riqueza não está perdida

Ajéigbe vai chegar, a riqueza não se perderá

Aklsatán - Não se usarão mais farrapos

Aklsatán eu não verei mais amarrar as roupas, Akísàtán não parta

mais

Akújí- O que está morto, desperta

Akúji, faca sortes de prestidigitacão

Apara O que frequenta minha casa

Apara, não fique indo e voltando

Aybrunbò - Vá ao céu e volte

Ayorunbo crianca que cobre o corpo de terra

Bánjókó - senta-se comigo

Bánjókó, senta-se, repousa

Dúróddlú - Espera o Senhor

Dúródólú, teu senhor está a caminho

Dúrójaiyé Fica para gozar a vida

Fica para gozar tua vida, fica ainda, Durojaiyé

Dúrdorlike - Fica, tu serás mimada (nome para uma menina àbíkú)

Fica, tu serás muito mimada neste mundo, Obróoríké

Dúrósnm í - Fica, para me enterrar

Fica, para me enterra, não durmas em vão, Dúrósihmi

Dúrósomo - Fica, para fazer filhos

Fica para fazer filhos no mundo, não faça filhos no céu Dúrósomo

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Dúrótoye - Fica para receber um título honorífico

Fica, para receber um título, não vá ao céu de tarde

Dúrówòjú - Fica para olhar nos meus olhos

Fica, para olhar nos olhos de teu pai e tua mãe, Dúrówòjú

Ebelokú - Suplica para que fique

Suplica para que fique, suplicante está a criança, Èbelokú

Enílolobò - Alguém que partiu, volta

Alguém que partiu, volta, alguém semelhante chega

Enúnkúnoníipe - O que consola está cansado de oferecer condolências,

iso o cansa Enúnkúnonjipe

lgbéko yl'j - O mato recusou este aqu i,

igbékoyií, o mato recuspu mesmo este aqui'

I kúfor~/ in- A morte perdoou

Meu lkúforoin, tua cabeça não vai mais morrer

Ilètán - A terra acabou (não há mais terra para enterrá-lo)

A terra acabou, não vemos mais possibilidade de enterrá-lo

Jéaríobé - Deixa-nos pedir-te

Deixa-nos pedirte, se te pedimos que nos escute, Jéaríobé

Kíké - Indulgente

A crianca é indulgente, Ki ké

Kòjékú - Não consinta em morrer

Não consinta em morrer, nós o prendemos na terra

Kòkúmó - Não morra mais

Kòkúmó, oh filho do segredo!, não morra mais, fique sobre a terra

Kòníbírè - Não há mais lugar para ir (fora deste mundo)

Kòníbíre não vê lugar para ir

Kèsílè - Não há terra (onde enterrar)

Não há terra, não vemos mais possibilidade de lhe enterrar, Kosjle

Kòsókó - Não há enxada (para cavar o túmulo)

Não morra, não há enxada para cavar a terra Kòsókó

Kúmápdy i i - A morte não leva este daqui

Kumápáyl'í que bebe água na cabeça dos mortos, se ele a usa, a

batalha será hoje mesmo

Kúti - Ele não está totalmente morto

A morte empurra para o mundo, não vá para o céu, morte, empurre

para o mundo

Mákú - Não morra

Não morra, mulher do babalaô, Mákú não morra

Malomó - Não te vás mais

Não te vas mais, retorna, Málomò

Mátanmi - Não me decepciones

Eu terei notícias tuas, não me decepciones, eu terei tuas notícias,

não partas

Obísèsan - Nascido para a vingança

Obísèsan vem fazer a vinganca do bem para o mundo

36 Okúsèhíndé - O cadáver volta

37 Orúkotán - O nome acabou

Orúkotán, seu último nascido, Orukotán

38 Omotúndé - A crianca voltou

A crianca voltou,. ela não será mais Àbl'kú, Ornotúnde

39 Orunkún - O céu está cheio

O céu está cheio, não te vás mais, Orunkún não te vás mais, ele ficou

40 Rótimi - suporta-me

Rótimi boa vinda, bom filho, Rótimi boa vinda

41 Tanímòwò - Quem sabe cuidar dele?

Quem sabe cuidar dele, se não o senhor, Tanlmòwò?

42 Tijúikú - Envergonhado da morte

Tijúikú não deixa a morte te matar

É PRECISO CUIDAR DOS ABli<Ú, SENÃO ELES VOLTAM PARA

ri, cíu

A morte não deixa a criancinha ser forte

Fl.!i~eraisn ão deixam ernerè ficar velho

Ifá foi consultado para "A-morre-os-puniu" (nome do abíkú)

qur 6 filha de funerais

5 Quando "A-mori-e--os-puniu" cheça ao mundo, e!a vai perto do

gi13rdião da porta

El? diz, ela vai ao mundo

Ela diz qiit! mesmo vocês (meus pais) lhe dessem dinheiro

Ela diz qbz nSo olhará para trás (não ficará)

Ela diz que !mesmo) que eles quisessem lhe dar vestidos

10 I I?toi não 3trairá OS seus olhares

Ela diz que se eles fizessem coisas para ela

Ela ciiz (isto! nao lhe agradar-ia

Ela diz que todss :I.< coisas cylie fizeram para ela completamente

Ela diz que, simplesmente, o5 jogará fora

15 Ela diz que o dinheiro que eles quiserem gastar

Ela diz que será dinheiro perdido

O guardião da porta diz, nPo é bem assim

Há! diz ela, é assim que ela vai fazer

Ele diz, entãù está bem

20 Ele diz, quando voc? vai voltar?

Ela diz que no momento em que ela agradar a todos (seus pais)

Ele (áb/kC) r a trairá para o céu

No momento em que eles (seus pais) fizerem coisas para ela

Ela diz, neste momento ela voltará

145

O guardião da porta diz, está bem então

Quando "A-morte-os-puniu" chega ao mundo

Sua mãe toma dois e aí junta três (ela consulta Ifá)

Esta menina poderá ficar com ela?

Eles (os babalaôs) mandam que ela faca oferendas para esta crianca

Eles dizem, ela e um abfiú verdadeiro

Eles dizem, ela se chama "A-morte-os-puniu" (lkú-;é-nwon-niya)

Eles dizem, faca rapidamente oferendas para ela

Eles dizem que e'sta menina não.será capaz de deixar o mundo

Eles dizem que ela pegue um galo

Eles dizem que ela pegue um bode

Eles dizem que ela tenha um tronco de bananeira

Eles dizem que ela tenha uma folha de abíríkoío

Sua mães grita hurra! nada acontecerá a esta menina

Eles dizem que ela pegue um bode

Eles dizem que ela pegue um tronco de bananeira

Eles dizem que ela pegue uma folha de agidimagbayin

Eles dizem que ela pegue uma folha de abirikolo

Sua mãe grita hurra! nada acontecerá a esta menina

Quando esta crianca chega na idade

Quando ela chega na idade de ir a casa de seu marido

Acontece que esta menina pensa repentinamente

Quando ela pensa repentinamente, ela fica com dor de cabeca

Antes do cair da noite, ela tem dores no ventre

Antes da aurora "A-morte-os-puniu" vai morrer

Sua mãe vem gritar, ela diz ah!

Ela diz, assim os babalaôs disseram

A morte não deixa a criancinha ficar forte

Funerais não deixam eméré ficar velha

Ifá é consu Itado para "A-morte-os-pu niu"

Que é filha de funerais

Ela diz, seu olho a faz olhar aqui e lá

Ela diz, seu olho está brilhando (de lágrimas)

Ela diz, seu rosto está coberto d'água, ela chora

E assim que (quando) esses abfiú vêm ao mundo

(E) vão dar adeus diante do guardião da porta

Eles dizem que esta pessoa fará qualquer coisa para eles

Eles não serão capazes de ficar quando chegar a hora

Em que as pessoas cuidem bem deles

Porque quando as pessoas são atraídos por eles (gostam deles)

Neste momento, eles querem deixar as pessoas.

OFERENDAS PODEM RETER ABÍKU NO MUNDO

A dificuldade atinge repentinamente alguém

A desgraca sobre alguém

Ifá é consultado para llere

Que é o filho de O b i r ~ nab ata (mulher pântano)

5 llere diz que vai ao mundo

Diz que se ele chegar ao mundo

Diz que toda a comida que lhe derem

Ele diz, ele não a comerá

Ele diz, (esta) dádiva ele a comerá no céu

10 Ele diz, todas as coisas que quiserem lhe dar

Diz que não as aceitará

Ele diz, (estes presentes) no céu ele os aceitará

Diz que não há coisas que o possam reter

Quando ele chegar no mundo

15 Esta crianca é capaz de não morrer assim?

Ha! Dizem, eles (os pais) farão uma oferenda, ele não vai morrer

Eles dizem, a menos que eles não tenham um vaso novo

Eles dizem que eles tenham todas as coisas que a boca come

Que eles tenham um tecido vermelho

20 Eles dizem, que ele tenha uma tampa de panela, cânhamo (osum),

sabão, esponja

Eles dizem quando eles tiverem oferecido tudo isso

Eles dizem que o colocarão rio abaixo

Eles dizem que lá estão seus companheiros que o vão chamar e

matar

Eles dizem, é lá que eles vão ficar

25 Quando eles tiverem prontos, trarão as coisas para oferecer

Quando eles trouxerem estas oferendas

Seus companheiros o esperarão e não o verão chegar

Eles irão ao local pantanoso

No lugar onde se reúnem para se dizer adeus

30 Eles comecarão a chamá-lo

Eles chamarão llere, Ô llere Ô -

Para que eles Ihes responda

Ele diz, assim os babalaos disseram

A dificuldade encontra alguém de repente

35 A desgraca cai sobre alguém

Ifá é consultado para llere

Que é filho de Obl'rin abatá

Ele diz, quem chama Ilere

Ele tem bracos fortes, pés fortes

40 Eles ouvem, eles dizem ah!

Seus companheiros não vêm ainda

Eles voltam

Sua fam il ia fez oferendas

Ele não vai morrer

45 Se é um àb/kú

Motivo pelo qual esses abíkú vão ao riacho

Ou olham o muro

Ou vão ao monte de estrume

Se os àb;kú chegam

58 (e) dizem que têm dor de cabeca

Seus companheiros vêm pegá-lo

(Mas) Aqueles para quem foram feitas as oferendas

Não abandonarão mais as pessoas

SUBTERFÜGIOS PARA RETER OS ABIXÜ NO MUNDO

Osé Omolu oh! a crianca tem um segredo

Ifá é consultado pelo cacador que está à espreita

Que está à espreita na encruzilhada dos caminhos de àbíkú

Eles (os babalaôs) dizem, tu que estás à espreita

5 Eles dizem, teu olho verá muitas coisas hoje

Quando o cacador que está de tocaia no mato

Ele vê três (àbíkú) vindo ao mundo

Quando eles vêm ao mundo

Eles comecam por dar adeus diante do guardião da porta

10 Um diz que vai assim ao mundo

Diz que a lenha que seus parentes usarem

(para preparar sua papa (de legumes)

Ele diz que no dia em que ela acabar de queimar

Ele diz, neste dia ele voltará, voltará para o céu

O guarda da porta diz que entendeu

15 O segundo (àbíkú) aparece lá e diz adeus

Diz que vai assim ao mundo

Diz que o tecido que (sua mãe) utilizar para carregar as costas

Ele diz no dia em que este pano estiver estragado

Ele diz neste dia ele voltará para o céu

20 A terceira (àbíkú) chega lá

Ela diz que vai assim ao mundo

Ela diz que no dia em que seus ais lhe disserem para ir a casa do

seu marido

Ela diz neste dia ela voltará para o céu

Quando o cacador retorna a sua casa

25 Ele fica sabendo que estes três (abíkú) nasceram em suas casas

Ele vai visitar as três mães

Diz a primeira, tu que puseste um menino no mundo

Ele diz, não deixes que a lenha debaixo da panela da papa de legumes

de seu filho, se queime completamete

(Senão) esta crianca vai morrer

30 Diz, tu que deste a luz a segunda

Ele diz, o pano que usares para levá-lo nas costas

Ele diz, não deixes que se rasgue, usa um diferente (dos outros)

(Senão) esta crianca vai morrer

Ele diz tu que pariste a terceira

35 Ele diz, se é tempo de levar tua filha para o marido

Ele diz não te arrisques a indicar o dia, e dizer que neste dia tu a levarás

a casa do seu marido

(assim) esta crianca será capaz de ficar no mundo

As três mães dizem que entenderam

Elas consultam Ifá

40 Quando elas chegarn jbnto do babalaô

Eles encontram (o si&..l) Osé omolu

Eles (os babalaôs) dizem que elas tenham um tronco de babaneira

Eles dizem que elas tenham uma cabra como oferenda

Eles dizem que elas tenham também urn galo

45 Eles dizem quando elas tiveram aceso o fogo sob a panela que cozinha

Eles dizem, se o fogo quker morrer, que elas juntem um tronco de

bananeira

Quando o ábjku olhar oembaixo da panela, um acha

Ah! diz ele, o fogo não está quente

Elas fazem assim (continuamente)

50 Esta crianca não vai mais morrer

Eles dizem que elas arranquem a pele de uma cabra

Eles dizem que elas costurem sobre o pano que a mãe usa para levar

o filho nas costas

Quando chegar a hora (do abíku) dizer se o pano está estragado, ele

voltará para o céu

Quando ele olha o pano atrás, ele não esta rasgado ( e não tem furos)

55 Ele diz que a hora ainda não chegou

Esta crianca não vai mais morrer

Quando é chegado o momento de dizer que é tempo de ir à casa do

marido (e) de morrer

Nesta hora, seus pais não lhe dizem nada

Um dia eles a tomam bruscamente e a levam (para a casa do marido)

149

60 Ela não vai mais morrer

Ela diz Ah! Eles seguiram outro caminho

Quando seus companheiros (abíkú) os esperam assim (e) não os

vêem chegar

Seus comoanheiros (abiku) vêm ficar atrás da casa

Eles os chamam

65 Eles os chamam todos os dias

Estes três (abikú) vêm responder a seus companheiros

Eles choram para voltar para junto deles

(Canto1

0sé omolu oh! a criança tem um segredi

Vocês dizem a lenha não se queimou, oh! a criança tem um segredo

Osé omolu ah! a criança tem um segredo

Vocês dizem, o pano não se rasgou, oh! a criança tem um segredo

Òsé omolu, oh! a crianda tem um segredo

Vocês dizem que levam a criança à casa do marido, oh! a crianca

tem um segredo

Osé omolu, ah! a criança tem um segredo

(fim do canto)

Estes três ibíkú não vão mais morrer

Eles seguiram outro caminho

MOSETAN FICA NO MUNDO

Levanta-te, levanta-te beleza, levanta-te

lfá foi consultado para Mosétán (eu acabei 1

Que é a filha de Blóje Okoso

Eles (os babalaôs) dizem que Mosetan venha fazer oferendas

5 Dizem que seus compant-+eiras que ela em sonhos

Que eles não sejam capazes de aprender fora do mundo

Eles dizem que ela pegue um tronco de bananeira

Dizem que ela pegue uma das suas tangas

Eles dizem que ela pegue um galo

10 Eles (os pais) fazem a oferenda

Quando eles fazem a oferenda, eles colhem as folhas de Ifá (agídímagbayin

1

Quando acabam de colher, eles vão com seu tronco de bananeira

Com sua tanga, com as folhas de Ifá

Ela não vai mais morrer

15 Ela não verá mais as coisas más

Eles dizem assim dizem os babalaôs

Levanta-te, levanta-te beleza, levanta-te

Ifá foi consultado para Mosetán

Que é a filha de Olojé Okosó

20 Crianca que recebe pedacinhos (de comida) na boca

Olorum fecha a porta (para) que não morramos ma.iç

A mão (encontra) as folhas de agídímagbayin

Olorum fecha a porta para que não morramos

Assim fala Ifá

25 Ifá diz que a crianca vê coisas más em sonhos

Que a crianqa chama seus companheiros (abíkú)

Que els não serão mais capazes de prendê-la (fora do mundo)

Òtua tem um segredo, talvez ele seja ativo

Ifá é consultado para Olóiko

Que é o chefe da sociedade (dos abíkú) no céu

Que do céu parte para o mundo

5 Quando Olbikb se vai, os abjkú dizem assim:

Tu Olóikò que partes assim, não fiques muito tempo (ausente)

Se eles lhe promete que não ficará muito tempo (ausente)

Quando chegar a hora, (ainda que) os pais tenham feito muitas oferendas

para que eles fiquem

Estas crianças não escutam. Elas se vão

10 Estes seres são chamados Abíkú

Quando Olóiko se vai

Eles, (os abíkú) dizem, tu Olóiko

Eles dizem, tu partes assim

Dizem, esta é a tua cadeira

15 Dizem, ninguém (além de ti) pode se sentar nela

Ele (Olóiko) diz, ele se vai

Eles dizem que quando chegar ao mundo

Dizem que não se esqueca deles

Quando ele chegou ao mundo, ele os esqueceu

20 Seus companheiros chegam a beira do regato

Eles chamam Olóiká, Olóiko, Olóiko

Olóiko escuta, (mas) não responde

Os pais de Olóiko correm a procura dos babalaôs

Eles dizem que Ifá os ajude

25 (Que) este Olóiko não seja capaz de morrer

Seus companheiros o chamaram, que ele não seja capaz de encontrá-

los

Eles (os babalaôs) dizem que sua cadeira está no meio de seus compan

heiros

Dizem, porque os pais tomam cuidado ele não vai morrer

Eles mandam que façam oferendas

151

30 Dizem que (eles dêem) um tronco de bananeira

Dizem que (eles dêem) um pombo

Dizem que (eles dêem) todas as coisas que a boca come

Dizem (que eles dêem) 1200 caurís (búzios)

Dizem que preparem um pano branco

35 Quando eles acabam de preparar, pegam todas as coisas e as amarram

juntas

Amarram estas oferendas como se fossem para funerais

Eles procuram um lugar perto do rio onde enterram as oferendas

Quando eles acabam de enterrar

0 s companheiros de Olóiko chegam pertinho

40 Como eles ficam ali perto

(e) vêem que trazem uma oferenda

(e) que cavam a terra e ali enterram (alguma coisa) como um caixão

de defunto

Quando acabam de enterrar

0 s companheiros de Olóiko chamam de novo : Olóiko, Olóikó, Olóikó

45 Os pais de Olóiko vão consultar Ifá para ele

Eles vão colher folhas de ablí-íkolo como oferendas

Quando eles acabam de colher as folhas

Eles esfregam todo o corpo (de Olóiko) com elas

Quando o corpo está completamente esfregado

0 s pais comecarn a cantar assim

"Porteiros do céu, voltai

FOI ha de ablí-íkolo)

Porteiros do céu, voltai"

Quando os porteiros do cé ouvem o canto que eles cantaram neste

dia

Que afasta as pessoas de sua sociedade do seu corpo (de Olóiko)

Porque se abíkú vem

Se (as pessoas) lhe fazem oferendas

Ãbíkú não tem mais (nenhuma chance de ir (para o céu)

ASEJEJEJAIYÉ FICA NO MUNDO NA DECIMA SEXTA VEZ QUE

ELE VEM

Ifá foi consu Itado para Òrunnmila por causa de seu filho Asejéjejaiyé

(E) a partir de Asejéjejaié que Orunmild prende ab;kÚ no mundo

No Odu de Ifá, Òdí meji

Asejéjejaiyé é o nome da crianca que Orunmila, que teve naquele

tempo

5 Ele, causa muitos aborrecimentos a Orunrnila, porque é a décima

sexta vez que vem ao mundo e morre

E então que Òrunnmila descobre suas manhas

Este Asejéjejaiyé chegou pela décima sexta vez

Òrunmila diz. Ah! este ó décimo sexto

152

Esta crianca não deve ser capaz de ir assim

10 Eles (os babalaòs) dizem que Òrunrnila prepare a folha idi e tudo

O mais

Eles dizem que Orunmílà queime tudo

Depois que Orunnmila queimou (para reduzir a um pó preto)

Eles dizem que Òrunmilà faca incisões nas juntas do corpo (de

A seJéjeja y

15 Que faca também incisões no seu rosto

Õrúminnla faz as incisões e (esfrega o pó)

Quando Orunmilà acaba de fazer as incisões

Eles dizem, esta crianca não conhece mais o caminho do céu (da

morte)

Dizem que ele pegue o resto (do pó negro)

20 Dizem que com ele confeccione um óndè (talismã)

Dizem que o amarrem a cintura da crianca

Dizem, ele não é mais capaz de partir

Dizem, o caminho do céu não foi feito para ele

Como eles colheram esta folha neste dia, eles dizem

25 A folha id/diz que o caminho do céu está fechado para esta pessoa

A folha idídiz que o caminho do céu está fechado para mim

Que eu não morra em minha juventude

A folha de iJá agbonrín não caminha ao longo do caminho que leva

ao céu

Que eu não morra, que eu não siga o caminho do céu na minha juventude

30 A folha de ija agbonrin não caminha ao longo do caminho que leva

ao céu

Eles dizem, não siga, pois o caminho do céu na sua juventude

A folha /ara pupa é o "cânhamo" (osun) dos ab/'kÚ

A crianca que esfrega seu corpo com a folha de /ara pupa não volta

para o céu

Ele (Òrúnmllá) diz que esfregou o corpo do seu filho com a folha

( Ia ra

35 Diz, e quando ele crescer

e quando se tornar um adolescente

e quando ele for pai

Ele diz, ele não vai morrer na sua juventude

Nós pronunciaremos esse encantamento assim

40 Se alguém era abikú que vai e vem, que vai e vem

Se nós pudermos fazer incisões (sobre seu corpo e esfregar nelas o

pó preto)

Se nós confeccionarmos um Ònde que predemos a sua cintura

O caminho do céu ficara então fechado (para esta crianca) neste

tempo

OSÃBíKU CHEGAM AO MLJNBQ PELA PRIMEIRAVEZ EM AWAIYÉ

Mato pequeno, mato pequeno

Escuridão escura

Quem conhece o trabalho da escuridão não procura atrapalhar a lua

Ifá foi consultado para Aláwaiyé que vem do céu ao mundo

5 Que leva 280 abikú para a terra

Quando Aláwaiyé chega

Ele é o chefe dos abikú no céu

Ele chama então os abjkú para que venham

Quando eles chegam na barreira do céu

10 Cada um declara o tempo que vai ficar (no mundo)

Um diz que, assim que ele tiver visto sua mãe, ele voltará

O outro que, no momento em que marcarem o dia do seu casamento,

ele voltará

Uma outra que, quando tiver posto um filho no mundo, ela voltará

Outro diz que', qùando tiver sonstruído uma casa, ele voltará

15 Outro diz que, quando seus pais conceberem de novo, ele voltará

Um outro que, quando comecar a andar, ele voltará

Quando eles chegam, Aláwaiyé está no comando dos ab;kú

Quando eles chegam, vão primeiro a Awaiyé

Eles dizem que farão, cada um, quatro vestimentas (cor de)

Eles dizem que prepararão um lenco de cabeca (do valor de) 1400

caurís

Dizem que preparam um boné (do valor) de 1400 caurís

Eles dizem que, se alguém conhecer suas proibicões quando eles

chegarem ao mundo

Se alguém conhecer o nome das vestimentas que eles combinaram

fazer

25 Eles dizem, se sua mãe soubesse das coisas combinadas

Eles dizem, eles ficariam perto dela

Eles dizem, se seu pai soubesse, eles ficariam perto dele

Quando eles chegam a Awaiyé

Alawaiyé firmemente os leva ao mundo

30 Ele vai a primeira vez, ele se vai de novo

Ele vai a segunda vez, ele se vai de novo

Ele vai a quarta, quinta, sexta vez,

Quando chega a sétima vez

A gente de Awaiyé vai consultar o babalaô

35 Seu filho será capaz de não ir mais?

Se alguém dá nascimento a um abikú

154

Se ele quer prendê-lo de tal modo

Que ele não queira mais partir de novo

Que prepare um lenco de cabeca (no valor de) 1400 caurís

40 Que prepare um boné (no valor) de 1400 caurís

Que prepare também um tecido (cor de) osun

(estes são os objetos sobre os quais eles (os àbíkús) fizeram uma

combinacão

Eles fazem uma roupa para ele (ablkú) neste pano (vermelho)

Eles têm uma floresta para si'em Awaiyé

45 Lá eles oferecem tudo

Dizem que ele (o pai ou a mãe) vá pendurá-Ia numa arvore na floresta

dos abíkú

Quando eles terminam de pendurar

Dizem todos a suas mães e seus pais

Que facam uma cerimônia para eles

50 Que dancem para eles

Que batam tambores para eles

Que preparem ekeru, akara, òlè, cana de acúcar, amendoins, doces

Que preparem esponjas e sabão

Que preparem todos os tipos de legumes

55 Eles dizem, se quiserem fazer isso todos os anos

Dizem que eles não partirão mais

Quando eles voltarem, eles dancarão aqui e lá

Terão tambores iyá dundún

Eles cantarão

60 "Esfreguemo-nos de Osun para o chefe da sociedade

Lenco na cabeca (do valor de ) 1400 caur is

Esfreguemo-nos de Osun para o chefe da sociedade

Boné (no valor dei 1400 caurís

Esfreguemo-nos de "Osun" para o chefe da sociedade

65 Esfreguemo-nos de "Osun" para Aláwaiyé

Esfreguemo-nos de "Osun" para o chefe da sociedade

Dancarão suas dancas

Eles dizem, se suas mães e seus pais fazem a cerimônia

Eles dizem, nenhum dos que são abl'kú não os deixará no mundo

IYAJANJASA NÃO DEIXA OS ÃBÍKÚ FICAR NO MUNDO

Guizos pequenos

Há muitos guizos pequenos

Ifá foi consultado para fya;an;isá que chefia a sociedade (dos abtkú

no céu)

155

Quando eles se reúnem (e) ela está chefiando a sociedade

Se estes ab/kú vão e vêm

Eles entregam sua mensagem a iyájanjasá

Se eles se vão, eles lhe dizem onde vão

Quando chegam eles dizem também a lyájanjasá

No momento exato em que ryájanjàsá

No momento exato em que iyájanjasá vem ao mundo

Eles dizem, tu és nosso rei (rainha)

Dizem que são os filhos de sua sociedade

Eles dizem, não permitem que ela venha ao mundo

Eles dizem, porque se ela vai ao mundo

Eles dizem, eles não encontrarão mais a quem entregar suas mensagens

Eles dizem, por isso iyájanjisá não irá ao mundo

iyájanjasá diz não faz mal

Diz que todos os que quiserem ir ao mundo, vão ao mundo

Diz que todas as criancas da sociedade vão ao mundo

O que quiser ficar sete dias no mundo,

Que diga que, no sétimo dia em que o tenham posto no mundo

Ele virá entregar uma mensagem a ti, a ti iyájanjasá

Ele virá entregar uma mensagem a ti, a ti li/ájanjasá

O que chame no momento em que for andar

O que chama no momento em que for engatinhar

Aquele que diz no momento em que for ter den$es

Aquele que diz no momento em que se puser em pé

Que ele venha entregar a mensagem a lyájanjasá

Eles prometerão, todos, assim,

No local em que iyájanjàsá está na sua chefia

Quando eles tiverem feito sua promessa a iyájanjasá

Eles farão as coisas que eles tenham determinado assim

Se o tempo é quase chegado

Que seu rei os espera

(e) ele não os vê ainda (chegar)

lj/ájanjasá usará de truques para os procurar

Eles também a procuram

iyájanjasá atrai estes ab /kú ao céu

O que disser que nãoencontra o caminho (do céu)

lj.4janjasá o ajudará (a encontrá-lo)

O que disser que não quer vir

Que as pessoas da terra consultaram Òrúnmila

E (que ele) os ajuda para que fique

iyájanjasá é perturbada por Òrúnmila

a respeito das criancas de sua sociedade que vão ao mundo

O que lhe prometeu voltar para junto dela

45 Que não vem mais, ela o tomará a forca

Todas as coisas que as pessoas fizerem para ele

Ela não as deixa agir

Todas as coisas que as pessoas fizeram para ab;kú

iyájanjasá as estraga

50 Eles dizem que contra abl'kú não há remédio

Porque todas as coisas que quiserem fazer para lhe agradar (ao abjkú)

lyijanjasá as estragará

Quando lyálanjasá os procurar aqui e acolá

Este filho da sociedade quer ir para o céu

55 Ele procura também iyájanjasá

Eles cantam esta cancão:

"iyájanjasá, pequenos guizos

Há muitos guizos pequenos

Eu busco minha sociedade (e) vou a Ofa, pequenos guizos

60 Há muito guizos pequenos

Eu busco minha sociedade (e) vou a Or9, pequenos guizos

Há muitos guizos pequenos

/Yájanjasá pequenos guizos

muitos guizos pequenos"

65 Quando tiverem cantado assim

Esta crianca, que é membro da sociedade dos abjkú

Que não encontrou, rapidamente, o caminho (do céu)

Virá cantar, dizer que

iyájanjasá a ajude a chegar ao céu

70 No lugar onde lyájanjasá gosta de ficar

Se ela puder ouvir este canto

Ele virá logo, correndo

Ela buscará, então, um meio de ajudar,

O filho de sua sociedade a encontrá-la no céu

75 Dizem que (contra) abíkú não há remédio

1-yá~anjaseás ta na frente da sociedade dos ibl'kú machos

Qloikó está na frente das abl'kú fêmeas

Se vides que uma crianca macho ganha idade

E que morre no momento de se casar, é pelo poder de lj/ájanjdSá

Tal é a história de iyájanjasá que chefia sua sociedade

e de como ela ajuda as criancas de sua sociedade (e) as atrai para o

céu

E (de ela estraga OS remédios dos que tomam conta deles

(tirado) do odu de Ifá irete

NOTAS

(1) As ,palavras em iorubd estão transcritas de acordo com as normas ortogrdficas dessa Itngua

( 2 ) DEBRUNNER, Witchcraftin Gana. Accra, 1959. p. 43

(3) Sunday Times. Lagos, 7 apr. 1968.

(4) HOUISI M. Le non individuel chez les Mossi. Dakar, IFAN, 1963. Cap, 5.

(5) MAUPOIL, 0. La geomancie à I'ancienne Cbte des Esclaves. Paris, Institut d'Ethnologie de

I'Université de Paris, 1943.

(6) 0 s algarismos romanos indicam os das histórias publicadas no fim do artigo;os algarismos

arábicos remetem para as linhas destas histórias.

(7) As cerimònias para os abíkú parecem ser pouco frequntes entre os iorubás; a única a que

assisti aconteceu entre os gun, em Porto Novo. Ela me tinha sido indicada por Mille M. J.

Pineau que fez um estudo sociologico de um bairro da cidade para a ORSTOM. Tratavam-se

de oferendas de alimentos feitos aos dbíkú em conjunto com osgèmeos, ibeji, ligando num

mesmo culto as crianças que não querem ficar no mundo e as que vêm duas ao mesmo tempo,

singularizando-se uns e outros, pelas circunstâncias excepcionais de seu nascimento, A

cerim0nia era feita pela tanyinonm encarregada do culto aos deuses protetores de uma famíiia

tradicional do bairro HouBta. Num canto da peça principal, oito estatuetas de madeira de

cerca de vinte centímetros de altura eram colocadas sobre uma banqueta de barro.

Todos vestidos de panos da mesma qualidade, mostrando pela uniformidade de suas vestimentas

pertencer a uma mesma sociedade (egbé). Seis destas estatuetas representam àbíkús e

as outras duas ibeji. As oferendas feitas pela tanyinnon consistiam de oka (pasta de inhame)

obèlá (espécie de caruru) èkeru (feijão moído e cozido nas folhas1 eran dindi, eja dindin

(carne e peixe fritos) que, depois da prece da tanyinon e da oferenda de parte desta comida

às estatuetas, foram distribuídas pela assistència. Uma Sacerdotisa de Obatalá (Chamado Dudua

em Porto Novo) assisti a cerimônia sublinhando as ligações que existiam entre o orixá

da criação, as pessoas de corpos mal formados, corcundas, aleijados, albinos) e aqueles cujo

nascimento B anormal (abikú e ibeji).

Esta cerimônia lembra a que é feita tradicionalmente para os gèmeos na Bahia pelos descendentes

de ioruba trazidos antigamente para o Brasil pelo trdfico. Todos os anos, no dia 27 de

setembro, dia de S. Cosme e S. Damião, 7 meninos são convidados por certas famílias para

comer o caruru tradicional oferecido aos ibeji. Este carui-u não é outra coisa senão o obèlá

da cerimônia dos abíkú e preparado do mesmo modo. Os sete meninos representam os gè.

meos Cosme e Damião, Dois-Dois (deformação de Idowu, aquele que, entre os iorubás, nasce

depois dos gêmeos Táiwo e Kèánindé) Crispim, Crispiniano, SalBk6 e Tàlèbí.

Em sua prece a tanyinon tinha evocado Sàlàkó, que com Tàlàbi são os nomes dados aos me.

ninos e meninas que vem ao mundo com pedaçosde membrana rompida sobre a cabeça; cir.

cunstância excepcionai do seu nascimento que os aproxima da sociedade dos abíku.

(8) HORTON, Robin. Africa traditional thought and Western Science. Afriw. London, 37

{2):159, apr. 1967.

kalabari Sculpture. Lagos, 1965. p. 10

LAVOND~SH, enri. Magie et langage. L'Homme. 1963. p. 115.

(9) WILLIAMS, Peter Morton. Yoruba response of fear of death. Africa. London, 30 (1 1:35,

jan. 1960.

(10) Por dificuldades tipográficas deixamos de transcrever os textos respectivos do original em

iorubá, que se encontram no artigo: VERGER, Pierre. La societé egbé orun des Abíkú, les

enfants qui naissent pour mourir maintés fois. Bulletin de I'lfán. Dakar, 30 (41: 1448187,

1968. (série BI.

lTradução do original em francês de Ieda Machado Ribeiro dos Santos (CEAO).

LA SOCÓTÉ EGBÉ ORUN DESABIKÚ, LES ENFANTS OU1

NAISSENT POUR MOURIR MAINTÉS FOIS

Si une femme, en pays yoruba, donne naissance à une série d'enfants

rnort-nés ou morts en bas âge, Ia tradition veut que ce ne soit pas Ia venue

au monde d'enfants différents, mais qu'il s'agisse de diverses apparitions

d'un rnême être malé fique appelé abiku (naitre-mourir), censé venir

au monde un bref moment pour s'en retourner au pays des morts, orun,

l'au-dela, à diverses reprises. I1 passe ainsi son temps a aller et revenir de

l'au-dela au monde, sans jamais y rester logtemps, au plus grand désespoir

des parents désireux d'avoir de nombreux enfants vivants pour assurer

Ia continuité de Ia famille.

Huit histoires, itan d'lfa, contées par Ies babalawô (les peres qui possedent

les secrets) au Nigeria sont données dans leurs textes complets et

montrent comrnent les abiku sont censés former une société, egbe orun.

Au moment de venir sur terre, chacun d'entre eux doit prendre l'engagement

de revenir auprés de leurs compagnons a une èpoque déterrninée

par lui Mais si les parents parviennent a /e retenir au monde par certaines

o ffrandes, /e charme est rompu, l'abiku, oubliant sa promesse de retour,

et, rornpant ainsi le cycle de leurs allées et venues continuelles entre Ia

vie et Ia mort, reste enfin au monde pour une période de vie normale.

11s reçoivent certains norns au mornent de leur naissance, les suppliant

ou les incitant 2 rester au monde. La fréquence avec laquelle on rencontre

en pays yoruba ces noms, portés par des adultes et des vieillards en

bonne santé, montre que beacoup d'abiku restent au monde, grâce aux

';arécautions" décrites dans cet article.

TUE EGBÉ ÒRUN SOCIETY OF THE ABIKÚ, THE CHILDREN

BORN TO DIE

l f a womari gives birth, in Yoruba country, to series of still-born children

or if they die in infancy, tradition says that it is not the birth of various

children, but that it is the same malevolent creature corning severa1 times

to earth. He is called abiku (born to die) and supposed to come to earth

to return after a short time to the country of the deads. He comes and

goes from and to the "beyond" and the earth without remaining here for

long, for the greatest despair of the parents, anxious to get numerous

children to secure the continuity of the family.

Eight stories, itan of lfa, told by babalawo (the fathers who possess the

secrets) in Nigeria are given in their full ex tension and show how the abiku

are supposed to form a kind of "club", the egbe orun. Each of its

 



LINHAGEM & LEGITIMIDADE NO CANDOMBLÉ PAULISTA

LINHAGEM & LEGITIMIDADE NO CANDOMBLÉ PAULISTA

 

A expressão "candomblé paulista", já no título deste artigo, pode soar estranha ao leitor. Afinal, quando se fala em candomblé pensa-se logo na Bahia e suas populações negras com seus costumes de origem africana. Religião afro-brasileira em São Paulo é a umbanda, pensamos logo, pois a umbanda é a religião da sociedade brasileira, cujos modos de vida se formaram no pós-1950, com o desenvolvimento capitalista centrado nas.metrópoles industriais em formação no Sudeste do pais. De fato, o termo candomblé, que já era usado, pelo menos, desde os meados do século passado para designar práticas ou objetos de uso ritual da magia e da religião dos negros livres e escravos, que viviam na corte imperial e na Bahia, veio a consolidar-se, desde o começo deste século, como designação das religiões de culto aos orixás, voduns e depois encantados tal como se constituíram em Salvador e no Recôncavo baiano.

Nos estados acima da Bahia, até o Rio Grande do Norte, porém, mais expressivamente em Pernambuco, as religiões de origem predominantemente africanas receberam designação de xangô; no Maranhão e no Pará foram chamadas de mina; no Rio Grande do Sul seu nome é batuque; e no Rio de Janeiro, macumba, termo que veio a se generalizar para qualquer referência (em geral preconceituosa) às religiões de origem negra de qualquer parte do país.

A partir dos anos 60, contudo, a palavra candomblé, antes reservada às' expressões baianas do culto aos orixás, começou a se transformarem nome genérico para os cultos afro-brasileiros de origem "antiga", das diversas regiões do pais, em oposição ao termo umbanda, que é o nome pelo qual a mais difundida religião de origem africana é conhecida desde sua formação lá pelos anos 30 e 40.

A umbanda, nascida no Rio de Janeiro do contato do candomblé com o kardecismo, profundamente influenciada pela moralidade cristã já incorporada pelos espíritas, veio, em oposição ao candomblé como religião de populações negras, a se firmar como religião para todos, sem limites de raça, cor, geografia, origem social. Enquanto o candomblé continuava como expressão de uma sociedade de molde estamental, escravocrata na origem, a umbanda espalhou-se como a religião brasileira para a sociedade de classes, industrializada, urbanizada, de intensa mobilidade geográfica e social. A umbanda, ao se fazer como religião independente, adotou o uso da língua portuguesa, abandonou o sacrifício ritual de sangue e a iniciação sacerdotal com reclusão e mortificação, deixou de lado o oráculo do candomblé (especialmente o jogo de búzios) que dá ao chefe do grupo de culto a prerrogativa de decifração do destino e dos males e oportunidades da pessoa; incorporou do kardecismo a noção básica da caridade, que deslocou o eixo do culto para a prática da cura através da intervenção dos espíritos desencarnados ou encantados, no rito do transe, reduzindo a importância dos orixás e minando a estrutura rígida da autoridade centrada na mãe ou pai-de-santo que caracteriza o candomblé.

Nos passos do kardecismo, a umbanda vai se organizando em federações, adota um estilo burocrático de organização e vai cada vez mais se mostrando publicamente e lutando para ocupar espaços fora dos limites do terreiro. A umbanda rompe, quase totalmente, com a idéia de mistério e segredo que é tão cara ao candomblé, mesmo porque foi se escondendo que este conseguiu sobreviver na sociedade branca e hostil. Sem mistério iniciático, a própria iniciação lenta e "misteriosa" do candomblé deixou de fazer sentido para a umbanda. Assim, e por isso tudo, até recentemente, a umbanda era vista pelas ciências sociais como uma religião para a sociedade contemporânea, cabendo às diferentes modalidades regionais do candomblé a preservação do patrimônio ético de origem negra afastado da sociedade inclusiva por limites. culturais, correndo inclusive o risco de desaparecimento à medida que a sociedade de classes avançava a incorporação de segmentos presumidamente identificados com uma identidade que os remetia a vínculos voltados para um passado cultural e social incompatível com a vida na sociedade moderna.

A despeito de o candomblé nunca ter, antes dos anos 60, se constituído significativamente como religião organizada em São Paulo, e apesar de se acreditar que a umbanda, no conjunto das tradições afro-brasileiras, era a expressão religiosa mais propriamente adequada e coerente com a sociedade industrial da grande metrópole do Sudeste, o candomblé veio a ser atualmente uma alternativa importante no quadro das religiões populares que disputam o mercado religioso em São Paulo (Prandi, 1990).

Tendo deixado de ser uma religião de grupos negros – como foi em suas origens e ainda o é em certas cidades do Nordeste, sobretudo –, o candomblé em São Paulo arrebanha adeptos de todas as origens étnicas e raciais, prolifera sobremaneira entre os pobres, como o pentecostalismo e a umbanda, oferecendo-se inclusive como agência religiosa especializada de serviços mágicos para uma demanda de clientes de qualquer classe social não comprometidos religiosamente.

Sua recente presença em São Paulo, não anterior ao ano de 1960, já definida nos termos de uma religião competitiva capaz de se afirmar como religião de caráter universal, isto é, aberta a todos, representa uma terceira etapa de um processo iniciado com a introdução do kardecismo na sociedade brasileira, na virada do século, e redirecionado com a consolidação da umbanda, numa segunda etapa, a partir dos anos 50. No começo, e ainda hoje, a maioria dos militantes do candomblé paulista é salda dos quadros umbandistas, já contando o candomblé nos dias correntes com cerca de três mil terreiros em São Paulo (Prandi e Gonçalves, 1989 a e 1989 b).

Em 1987, iniciei um projeto de pesquisa com o fim de conhecer o processo de mudanças que vem fazendo do candomblé, em São Paulo, uma religião originalmente de grupos negros, uma religião de caráter universal, isto é, sem barreiras geográficas, étnicas, de cor e de classe social. Uma religião que, desse modo, passa a competir com outras ofertas religiosas presentes na metrópole paulista, sobretudo o pentecostalismo e a umbanda, mas também o novo catolicismo popular das comunidades de base.

Até 1989, foram estudados 60 terreiros de candomblé localizados nos mais diversos pontos geográficos da região metropolitana da Grande São Paulo, incluindo-se nesta amostra terreiros das mais expressivas "nações" de candomblé (1): do tronco iorubá, terreiros das nações queto, efã e nagô pernambucano; do tronco banto, terreiros angola; do fon, o jeje-mina; além do candomblé de caboclo, que pode aparecer justaposto aos demais, mas nunca autonomamente (2). Creio que a pesquisa permitiu reconstruir uma primeira versão da formação do candomblé em São Paulo, identificar suas fontes e avançar alguma interpretação sobre o sentido sociológico de sua reprodução no Sudeste contemporâneo em contraposição com a umbanda, religião que a muitos se mostrara como uma espécie de etapa "urbanizada" do próprio candomblé em seu contato com o kardecismo, visão que condenava o candomblé ao espaço das religiões voltadas para grupos específicos (Prandi, 1990).

Característica importante do candomblé é a ênfase na origem religiosa, a importância atribuída ao conhecimento da genealogia religiosa do iniciado, a valorização da tradição. Um membro do candomblé é reconhecido nos meios do chamado povo-de-santo, os adeptos do candomblé, pelo conhecimento que se tem de quem o iniciou, seu pai ou mãe-de-santo, de quem iniciou seu pai ou mãe, e depois seu avô ou avó, e assim por diante, até a Bahia do século passado e até a África, se e tanto quanto possível.

A origem religiosa, hipervalorizada no candomblé, padece, contudo, de muitas dificuldades, entre as quais o fato de que as origens mais valorizadas mudam com o tempo. Um tronco religioso "antigo" ora é mais ora é menos aceito como de maior legitimidade, pois muito aí influi não só o carisma e a publicidade dos chefes de terreiro que lideram as linhagens, como a própria pesquisa cientifica; capaz de, através do registro etnográfico das descobertas feitas pela prática da reconstituição histórica, emprestar- a esta ou àquela casa de candomblé um reconhecimento de "antigüidade" e "originalidade" muito procurado pelo povo-de-santo.

Nos dias de hoje, neste jogo de afirmação, importantíssimos são a mídia, os movimentos artísticos e culturais e as instituições oficiais encarregadas de definir, selecionar e preservar aquilo. que possa ser definido como "tradição" para a sociedade brasileira, ou seja, os órgãos de tombamento patrimonial. Candomblé sempre foi identificado com tradição, e como tal se forjou como objeto da ciência, desde Nina Rodrigues no final do século passado, o qual estudava preferencialmente o terreiro do Gantois (que mais tarde seria chefiado por Mãe Menininha, a mais famosa mãe-de-santo de todos os tempos) exatamente pelo fato de poder creditá-lo como um terreiro de origem africana "legítima", autêntica. E este tem sido desde esses velhos tempos o grande drama do candomblé: quem é criais legitimo, mais antigo, mais autêntico, mais tradicional?

No presente texto, ao estudar a formação do candomblé em São Paulo em suas relações com o candomblé das regiões de onde este é proveniente, procuro mostrar como os adeptos do candomblé enfrentam e Manipulam a questão da tradição, movendo-se com muita freqüência de uma linhagem religiosa para outra, ao se mudarem de terreiro e mudando de nação. As tendências mais claras da direção em que se dão essas mudanças de axé (terreiro, linhagem, nação) permitem perceber a existência de um processo de mobilidade no interior da religião que aparece como um processo de mobilidade social (no inicio é mobilidade geográfica: a migração do Nordeste para o Sudeste), uma vez que as redes de parentesco, e as mudanças de um grupo para outro, inserem os adeptos em linhagens religiosas de origens diferentes, todas elas portadoras.dos mesmos graus de prestígio. Como este prestígio é, sobretudo, um reconhecimento proveniente do mundo não religioso, que no começo deste século, no Nordeste, era o mundo branco, letrado, culto e de homens de extração social elevada, e, hoje, é a sociedade brasileira em seu conjunto, uma mudança de linhagem implica certo tipo. de ação no interior dá religião que remete, necessariamente, ao mundo profano. Ser do santo, ser do candomblé, hoje, prenuncia a possibilidade de uma carreira sacerdotal que também está referida à profissionalização, numa sociedade em que o feiticeiro e sua magia são perfeitamente aceitos socialmente, abrindo-se inclusive, para isso, espaços específicos no mercado de prestação de serviços pessoais. Competir num mercado de trabalho como o de agora importa deter certa competência, real ou atribuída pela agência formadora. Nesta sociedade, no mercado religioso e mágico, axé pode ter o sentido do currículo, isto é, o da boa escola.

Esse processo de refiliações a terreiros e famílias-de-santo (Lima, 1977) de maior reconhecimento pela sociedade exterior à religião, conta com fontes de ganho de prestígio que são definidas e oferecidas, muitas vezes, aos terreiros e aos adeptos, exatamente pela sociedade laica: o conhecimento acadêmico com suas fontes escritas e suas instituições de ensino culto, o mercado livreiro e discográfico, a formação de imagens públicas pela mídia eletrônica, além de mecanismos oficiais de atribuição de importância patrimonial a aspectos também da cultura popular, como os órgãos governamentais de tombamento e preservação compulsória. Para não falarmos da demanda pela religião e, especialmente no caso do candomblé, pela magia que põe em, destaque este ou aquele pai ou mãe-de-santo, terreiro, nação, linhagem. E se este destaque, esta visibilidade, de um lado é o do feiticeiro para uma clientela ad hoc interessada apenas na solução de seus problemas pessoais, do outro é a do sacerdote para uma população de fiéis.

Apesar de trabalhar dentro dos limites que me são impostos pelo objeto da investigação a que me propus, acredito ser possível, através dos achados aqui descritos, ver em funcionamento alguns mecanismos importantes na construção do que é uma tradição na sociedade brasileira, num jogo de apropriações sucessivas, em que, a última etapa parece ser a própria intervenção do Estado, que aparece não para preservar, como ele se propõe em principio, mas para construir, neste caso, uma tradição de 150 anos em apenas dez. Talvez seja apenas um capitulo a mais da história da invenção das tradições (Hobsbawn e Ranger; 1984).

 

 

Origens e linhagens

 

O candomblé chega e se expande em São Paulo por diferentes maneiras: através de pais-de-santo que vêm do Rio e da Bahia para iniciarem filhos aqui; quando umbandistas vão ao Rio e à Bahia para lá se iniciarem no candomblé; nos casos em que um pai ou mãe-de-santo migra para São Paulo já iniciado em seu estado de origem e abre aqui terreiros de candomblé; na situação em que o migrante já vem "feito" no candomblé, mas começa sua carreira religiosa em São Paulo abrindo casa de umbanda, para mais tarde vir a tocar candomblé e abandonar, a umbanda; e, finalmente, através de filhos que já são iniciados em São Paulo por mães e pais-de-santo, por sua vez, também iniciados em São Paulo. Estas cinco maneiras de entrar na expansão do candomblé em São Paulo podem ser observadas até os dias de hoje. Já na etapa de expansão, é claro, esta última forma é a mais freqüente e é também a que reforça a idéia de estar esta religião se enraizando na metrópole.

Dos meados dos anos 50 até o começo dos anos 60, Joãozinho da Goméia, que, havia muitos anos, transferira sua roça de Salvador para Caxias, no Rio de Janeiro, visitava constantemente São Paulo onde era amigo de influentes líderes umbandistas. Muitos dos primeiros personagens do candomblé de São Paulo foram por ele iniciados ("feitos", na linguagem-de-santo). E feitos aqui em São Paulo, embora este primeiro começo tenha contado também com filhos de Joãozinho feitos na Goméia do Rio e na originária Goméia da Bahia.

Por volta de 1960, havia um trânsito importante entre Rio e São Paulo, entre umbanda e candomblé, trânsito que trazia o candomblé para dentro da umbanda e o Rio para dentro de São Paulo.

Pela memória dos mais velhos, sabemos que os terreiros de mais prestigio (3), no Rio de Janeiro, nessa década eram todos filiados a tradicionais terreiros da Bahia; o terreiro da Goméia de Joãozinho e o Ilê Axé Opô Afonjá então dirigido por Mãe Agripina Souza, terreiro fundado por sua mãe-de-santo Mãe Aninha (Eugênia Anna dos Santos) no Rio, pouco antes de seu retomo a Salvador, onde veio a abrir, por volta de 1910, o Ilê Axé Opô Afonjá em solo baiano (4); a casa de Tata Antônio Fomutinho (Antônio Pinto) e de seu filho-de-santo Seu Djalma de Lalu (Djalma Souza Santos); a casa conhecida pelo nome de Pantanal, fundada por Pai Cristóvão do Ogunjá (Cristóvão Lopes dos Anjos), descendente direto da casa matriz da nação efã, o Terreiro do Oloroquê, em Salvador; o terreiro Tumba Junçara de Manuel Ciríaco dos Santos; e o de Neive Branco Manuel Rodrigues Soares Filho), gêmeos de seus terreiros baianos (5); o candomblé de João Lessenguê, e outros menos lembrados. Aí estavam representadas as nações de candomblé gueto, efã, angola, jeje-marrim, caboclo. Todas se reproduziram em São Paulo entre 1960 e 1970, quando a estas vieram se juntar outras de origem geográfica mais distante; a nação nagô pernambucana, a mina-jeje maranhense, o nagô-ijexá gaúcho. Refundindo-se, refazendo-se, transformando-se. São Paulo se fará cosmopolita, também, para as nações de candomblé.

O estabelecimento do candomblé no Estado de São Paulo parece ter começado em Santos, onde estão as casas lembradas como as mais antigas. Ou seja, enquanto umbandistas de São Paulo se iniciavam no candomblé com pais e mães do Rio ou da Bahia, tanto indo para lá como os recebendo aqui, alguns terreiros já haviam se instalado diretamente na Baixada Santista, mais ou menos em torno do cais do porto. O próprio povo-de-santo vê o candomblé como uma religião do litoral, certamente porque ele se formou em capitais litorâneas e suas cercanias: Salvador e o Recôncavo, Recife e Olinda, Baixada Fluminense, Porto Alegre. O mais antigo terreiro de candomblé no Estado de São Paulo foi fundado, pelos dados de que disponho, em Santos, em 1958, por Seu Bobó. Vindo da Bahia, Seu Bobó, José Bispo dos Santos, hoje com 75 anos de idade, ficou no Rio de 1950 a 1958. Diz a lenda (Bobó já é, em vida, uma lenda do povo-de-santo de São Pado) que. Bobó, na Bahia, teria sido suspenso, isto é, escolhido por um orixá no transe, para ser ogã no terreiro de Maria Neném (Maria Genoveva do Bonfim), um dos importantes troncos do candomblé angola, e que depois teria freqüentado a casa de Simpliciana (Simpliciana Maria da Encarnação), ialorixá do terreiro de Oxumarê (outro tronco fundante do candomblé em Salvador, hoje dirigido por Tia Nilzete). Acontece que um ogã não pode ser pai-de-santo, pois ele não tem a faculdade de entrarem transe. Comentei sobre essas coisas com ele e Seu Bobó me explicou: "Estes meninos de hoje, o que eles sabem do tempo dos antigos? Eu sou do santo e estou no santo faz mais tempo que o avô deles. Mas quando eles precisam aprender alguma coisa eles pegam o ônibus lá no metrô e vêm tudo correndo aqui." A casa-de-santo de Seu Bobó está há muito tempo no bairro do Itapema, Rua Projetada Caic, 63, município do Guarujá, do outro lado do canal do porto de Santos. Bobó é pai-de-santo de chefes de muitas casas de São Paulo, filhos que ele iniciou, ou que adotou ritualmente, como Roberto de Oxóssi* (6).

Também em Santos fixou-se Mãe Toloquê (Regina Célia dos Santos Magalhães). Iniciada ainda na Bahia por Joãozinho da Goméia, 50 anos atrás, Toloquê, mãe-de-santo de Adilson do Ogunjá*, veio para o Rio, onde iscou cerca de seis anos, e desceu para Santos nos anos 50, onde está até hoje. Seu terreiro, o Axé Obioju, fica à Rua Prof. Francisco Domênico, 584, no Bom Retiro, em Santos.

Ainda na Baixada Santista, em São Vicente, no início dos anos 50, abre casa o pai de=santo Vavá Negrinha, Valdemar Monteiro de Carvalho Filho, baiano de nação jeje de casa de Guaiacu. Hoje, doente, Seu Vavá vive na casa de seu filho-de-santo (por adoção) Walter de Ogum*, originário do catimbó pernambucano, e iniciado na candomblé do extremo sul do país, em Porto Alegre, 1969, na casa de Mãe Iemanjá-Ossi (Ester Ferreira), filha ou irmã-de-santo de João do Bará, linhagem estudada por Herkovits (1943) nos anos 40 e por Norton Corrêa (1988) no presente.

Todo esse grupo, fixado na Baixada Santista, mantinha estreitas relações com Joãozinho da Goméia e com certos terreiros de umbanda de São Paulo.

Em 1961, chega a São Paulo Alvinho do Omulu, Álvaro Pinto de Almeida,. branco, fluminense; feito no santo em 1954 pelo já citado Cristóvão de Ogunjá, no terreiro fluminense conhecido como terreiro do Pantanal, fundado por este em 1952, após ter passado alguns anos com um terreiro na Vila São Luís, em Caxias. Cristóvão vinha da Bahia onde fora iniciado no terreiro do Oloroquê por Matilde de Jagum Segunda; Matilde Muniz do Nascimento (1900-1973), filha-de-santo de Matilde de Jagum Primeira, que herdou o terreiro de seus fundadores, Maria da Paixão, a Maria do Violão, e o africano Tio Firmo Olufandei. Ainda na Bahia, mas já com casa em Obarama (embora nunca tenha se desligado do Oloroquê, até morrer, poucos anos atrás), Cristóvão iniciou, em 1933, Waldomiro Costa Pinto, Waldomiro de Xangô, popularmente chamado Baiano, e que virá a ser figura importante na etapa de consolidação do candomblé queto em São Paulo.

Antes de Alvinho chegar em São Paulo, como funcionário transferido do antigo IAPETEC, ele teve, no Rio, uma casa de candomblé aberta em 1964, no Largo do Bicão, na Penha. Ali tirou seu primeiro barco de iaôs, isto é, iniciou sua primeira turma de filhos-de-santo (7).

Em São Paulo, Pai Alvinho passou a freqüentar um terreiro de umbanda na Ponte Rasa, o de Décio de Obaluaiê, iniciado no candomblé por Tata Fomutinho. Nesta casa foi iniciado no candomblé, por Antônio Fomutinho, o umbandista Jamil Rachid, sendo Alvinho o seu pai-pequeno. Jamil. jamais abandonou a umbanda e veio a se tomar um dos dirigentes mais importantes no quadro das federações umbandistas de São Paulo (Concone e Negrão, 1987, p.49). E foi nesta casa que Pai Alvinho tirou seu primeiro barco de iaôs em São Paulo.

No início dos anos 60, havia em São Paulo outras casas em formação. Os pais-de-santo daquela época mais lembrados são Vavá Negrinha e Seu Bobó, que transitavam entre Santos e São Paulo, Seu José de Oxóssi, vindo do queto baiano, Camarão de Iansã, filho-de-santo de Joãozinho da Goméia, como sua irmã-de-santo Mãe Toloquê, além da presença constante, em São Paulo, do próprio babalorixá da Goméia, João Torres Filho, Joãozinho da Goméia, Joãozinho do Caboclo Pedra Preta, a quem se acusa de nunca ter sido feito por Jubiabá, como ele dizia, mas que foi o homem mais influente na consolidação pública do candomblé no Sudeste. Há os que se iniciam, que ingressam ritualmente no candomblé e há os que iniciam o candomblé, ou ritos e nações de candomblé. Como acontece com qualquer instituição.

Em São Paulo, Alvinho sempre se instalou na zona Leste. Sua primeira casa ficava na Vila Libanesa, onde raspou sete barcos, num total de 17 iniciados. Depois ele foi para Engenheiro Goulart, em 1964, e mudou-se mais uma vez, agora para a cidade A. E. Carvalho e finalmente para o Imirim. Em 1972, Alvinho voltou para o Rio, onde seu terreiro está hoje instalado em Engenheiro Pedreira, Nova Iguaçu. Mas vem freqüentemente a São Paulo. Nesses onze anos de terreiro em São Paulo, Alvinho iniciou 51 barcos de iaôs, dentre os quais os barcos de Ada de Obaluaiê*, João Carlos de Ogum*, José Mauro de Oxóssí*, Deusinha de Ogum*, enfim, toda uma primeira geração de pais e mães do candomblé paulista que já haviam experimentado por bom tempo o sacerdócio umbandista.

Dentre os muitos filhos-de-santo de Joãozinho feitos em São Paulo, podemos citar, entre os primeiros, Dona Isabel de Omulu* (1962), e sua filha Wanda* (1964); Sessi Mikuara, esposa do Tenente Eufrásio, importante nome da história da umbanda paulista, além de Gitadê*, feito no Rio, e que mais tarde trouxe para São Paulo o que restou dos fundamentos do terreiro da Goméia, e a já citada Mãe Toloquê, dos tempos de Joãozinho na Bahia.

Em 1965 abriu casa Manodê*, nascida no sul da Bahia, e iniciada em Salvador por Nanã, Erundina Nobre Santos. Quando Mãe Nanã se mudou para Aracaju, levou consigo sua filha Manodê, que, depois de se casar, acompanhou o marido migrante para São Paulo no ano de 1963. De nação angola, Nanã de Aracaju, falecida com 115 anos em 1981, é considerada a fundadora de um tronco angola que leva seu nome: o candomblé de Nanã de Aracaju. Esta linhagem já tem muitas gerações espalhadas por todo o Brasil (8).

A casa de Manodê*, fundada em 1965, no mesmo endereço em que ainda hoje se encontra, é um exemplo formidável do crescimento de uma casa-de-santo. Ali, ao lado do grande e novo barracão, ainda se encontra erguido o primeiro, acanhado e pequeno. Nesse terreiro, que sempre permaneceu uma casa de angola, ela iniciou e ainda inicia filhos, entre os quais Aulo de Oxóssi*, hoje gueto africanizado, do grupo da nova geração de pais e mães-de-santo intelectualizados, ao qual pertence Sandra de Xangô, sobrinha-bisneta-de-santo da mesma Mãe Manodê*.

Tendo se iniciado no candomblé diretamente no terreiro do Gantois de Mãe Menininha, nos anos 50, o paulista Babá Idérito*, após estudar iorubá na USP, em 1977, e empreender várias viagens à África, dirige hoje o terreiro de candomblé talvez mais africanizado do pais. No barracão de sua roça em Guarulhos, lê-se, afixado na parede, o seguinte: "Todas as modificações que foram, e que continuarão a ser introduzidas nesta casa servirão para conduzi-Ia até suas origens, na África".

Ainda desses primeiros anos é também a casa de Diniz da Oxum (Diniz Neri), filho-de-santo de Waldomiro Baiano, que se estabeleceu em São Vicente antes de 1960. Foi ele quem confirmou, no Rio, em 1961, Gilberto de Exu*, no cargo de ogã.

Em 1962, à procura de emprego, migrou de Feira de Santana Ajaoci de Nanã*. Logo se integrou nas redes da umbanda e desse candomblé em formação, iniciando expressiva linhagem na região Noroeste da capital. Dele 'é filho-de-santo, no candomblé, Aligoã de Xangô*, antiga mãe dë~ umbanda e depois de candomblé angola, a qual iniciará Armando de Ogum*. Este virá a receber, sete anos depois, seu grau de senioridade, já no rito gueto, africanizado, pelas mãos de Mãe Sandra de Xangô*.

Já no final dos anos 60, outras casas fundadoras foram chegando: Waldomiro de Xangô, Baiano, já citado, abriu casa por pouco tempo em São Paulo, mas manteve a de Caxias, no Rio, e mesmo depois, só com a roça do Rio, permaneceu residindo em São Paulo. Por volta de 1970, o efã Waldomiro Baiano passou a fazer parte da família-de-santo gueto do Gantois. Este fato, nos anos seguintes, fez mudar muita coisa no candomblé de São Paulo.

Pérsio de Xangô*, que já morava em São Paulo com casa de umbanda, voltou à Bahia em 1968, onde se iniciou com Nezinho da Muritiba, sendo sua dofona de barco Tia Nilzete, filha carnal de Simpliciana, ialorixá de Axé de Oxumarê, em Salvador, onde ela ocupa o cargo herdado da mãe. Em 1971, Pérsio* iniciou Tonhão de Ogum*, de quem mãe Rosinha* foi a mãe-pequena. Seu Nezinho da Muritiba, Manuel Siqueira do Amorim, era o chefe do terreiro do Portão de Muritiba, no Recôncavo, onde Mãe Rosinha de Xangô* era mãe-pequena; era estreitamente ligado por laços religiosos ao Gantois e à Casa Branca do Engenho Velho, onde fez o jogo de búzios para indicar a sucessora da falecida Tia Maci.

Numa de suas andanças por São Paulo, Nezinho, acompanhado por Rosinha*, deu, em 1970, a obrigação de senioridade ao pai-de-santo José Mendes*, o auto-intitulado "Rei do Candomblé", sobre quem Ismael Giroto escreveu sua dissertação de mestrado em Antropologia (Giroto, 1980). Neste terreiro Giroto foi confirmado ogã. Desligado depois desta casa, com os propósitos de se estabelecer como pai-de-santo, veio, inclusive, a questionar a fidedignidade de parte da informação oral fornecida pelo pai-de-santo sobre sua linhagem e registrada em sua dissertação.

Por volta de 1970, havia muitos paulistas sendo iniciados em São Paulo e outros mais indo à Bahia e ao Rio para lá fazer o santo. Ainda estava chegando gente que formaria grandes famílias, como Milton de Oxóssi (Milton Mercadante), que veio de Mãe Eulália do Axé da Ilha Amarela, no Rio de Janeiro; e Kajaidê*, que para lá foi a fim de ser iniciado. Pai Doda de Ossaim* foi filho de Milton de Oxóssi e, com a morte dele, passou para a mão de Kajaidê*.

Em 19 de março de 1971, aos 57 anos de idade, morreu no hospital das Clínicas de São Paulo, Joãozinho da Goméia. Ocorreu então uma reviravolta de nações no candomblé em São Paulo. O angola entrou em baixa, e o gueto se impôs, começando o período de predomínio desse candomblé nagô da Bahia, com grandes disputas sobre tradição, origem e legitimidade, tanto entre o povo-de-santo, quanto entre antropólogos (Dantas, 1988). Era a época do prestígio do Gantois de Mãe Menininha, e Baiano, então reconhecidamente adotado por esta mãe-de-santo, cantada em prosa e verso, passou a ser pai-de-santo de muitos filhos feitos por Joãozinho da Goméia, além de outros iniciados em outras casas e nações. Na qualidade de filhos de Baiano, eles passavam a ser ritualmente netos de Menininha – todos no axé do Gantois, a mais prestigiada família-de-santo de todos os tempos no Brasil. No ano de 1972, aconteceu o jubileu de ouro de iniciação da mãe-de-santo do terreiro do Gantois, ocasião em que Dorival Caymmi compôs Oração a Mãe Menininha, música que alcançou grande sucesso na voz de alguns artistas na época, por sinal baianos: Gal Costa, Maria Bethânia; Caetano Veloso.

Nesse contexto da "nagocracia", chegou Mãe Juju*, que assumiu em São Paulo a casa que seu pai carnal, Nezinho da Muritiba, vinha construindo em Sapopemba. Olga do Alaqueto (Olga Francisca Régis) fixou residência em São Paulo, permanecendo na Bahia quatro meses por ano, para as obrigações no seu mais que centenário terreiro.

Caio Aranha, famoso pai-de-santo da umbanda paulista, com terreiro primeiro no Brás e depois no Jabaquara; foi sé passando para o candomblé e inaugurou, em 1974, na Vila Fachini, o mais imponente terreiro de candomblé do país. Caio atraiu para sua casa a gente mais importante dos candomblés do Rio e da Bahia. Em 1984, ao falecer, foi sucedido por sua sobrinha e filha-de-santo, Sílvia de Oxalá*.

Gente feita no santo e que havia migrado para São Paulo numa época em que o candomblé não estava presente, e que, por isso mesmo, mantinha terreiros de umbanda, voltou à religião de origem e passou a tocar candomblé. Como é o caso de Mãe Zefinha da Oxum*; feita no nagô pernambucano por Pai Romão, filho carnal e herdeiro de Pai Adão, e por Mãe Maria das Dores*, ambos raízes do xangô pernambucano de maior reconhecimento público. E como o caso de Pai Abdias de Oxóssi*, que ainda menino fora iniciado pela mãe-de-santo Samba Diamongo do Terreiro do Bate Folha (terreiro fundado por Manuel Bernardino da Paixão), a qual foi a avó-de-santo do baiano Ojalarê, que já veio para "trabalhar no santo".

Ainda pela frente tivemos a chegada de Francelino de Shapanan*, do jeje-mina maranhense; a mudança para São Paulo do terreiro de Pai Gabriel de Oxum*, que, a partir de São Paulo; trabalhando religiosamente bastante ligado ao Pai Marco Antônio de Osaim*, e que tem permanecido boa parte de seu tempo na Suíça, onde tem larga clientela; a instalação de uma casa de culto de eguns, sob orientação de Mestre Roxinho, da família dos fundadores do candomblé de egungum de Itaparica; a vinda da filha carnal de Neive Branco, Mãe Meruca*; a mudança completa; do Recife para São Paulo, do terreiro quase centenário da mãe-de-santo de Mãe Zefinha de Oxum*, a matriarca pernambucana Mãe Maria das Dores* (já citada em 1934 nos anais do Primeiro Congresso Afro-brasileiro do Recife, organizado por Gilberto Freyre) (9).

Mas é difícil encontrarmos um terreiro em que todos, ou a grande maioria, tenham sido ali iniciados no candomblé, e mais raro ainda achar um outro em que boa pane dos iniciados não tenha abandonado a mãe ou pai-de-santo da casa (o iniciador original) para, se abrigar sob a tutela religiosa de outro axé. E a cada. mudança,,a teia de parentesco vai se ampliando, se emaranhando, como se, ao foral, partindo-se de tantas e diferentes origens, se chegasse a uma somente. No candomblé, o conflito separa, afasta e rejeita, mas induz também a aproximação e a adoção pelo outro. Isto, na resultante dos movimentos de afastamento e recepção, esta circulação de adeptos pelos terreiros, nações e linhagens, aproxima as casas, ainda que as mantenha. antagônicas entre si. E quase sempre haverá algum grau, mesmo que remoto, de parentesco com o outro. Assim se vai formando o povo-de-santo, e a religião se constituindo em âmbito nacional, por conseguinte.

 

Parentesco e força sagrada

No candomblé, a palavra axé tem muitos significados. Axé é força vital, energia, princípio da vida, força sagrada dos orixás. Axé é o nome que se dá às partes dos animais que contêm essas forças da natureza viva, que também estão nas folhas, sementes e nos frutos sagrados. Axé é bênção, cumprimento, votos de boa sorte e sinônimo de amém. Axé é poder. Axé é o conjunto material de objetos que representam os deuses quando estes são assentados; fixados nos seus altares particulares para serem cultuados. ,São as pedras (os otás) é os ferros dos orixás, suas representações materiais, símbolos de uma sacralidade tangível e imediata.

Axé é carisma; é sabedoria nas coisas-do-santo, é senioridade. Axé se tem, se usa, se gasta, se repõe, se acumula. Axé é origem, é a raiz que vem dos antepassados. Os grandes portadores de axé, que são as veneráveis mães e os veneráveis pais-de-santo, podem transmitir axé pela imposição das mãos; pela saliva; que; com a palavra sai da boca; pelo suor do rosto, que os velhos orixás em transe limpam de sua testa com as mãos e, carinhosamente, esfregam nas faces dos filhos prediletos.

Axé se ganha e se perde. A intensidade do axé de uma casa pode ser mensurada pelo número de filhos e clientes que seu chefe consegue arrebanhar. Axé é uma dádiva dos deuses, mas é preciso conhecer as fórmulas rituais corretas, perfeitas, para se chegar a ele. "Ah, mas qual é a folha certa?" se pergunta o venerando Idérito de Oxalufã, filho da mãe de mais axé do candomblé de todos os tempos, Mãe Menininha do Gantois, e que mesmo assim não se cansa de peregrinar à África na procura das verdadeiras raízes que, em parte, teriam se perdido no Brasil. Ele nos contou que, sempre, ao voltar da África ia a Salvador, subia a ladeira da Federação que leva ao templo da velha mãe, para tornar a sua bênção. Em respeito a ela nunca tocou no assunto de suas viagens. Sua irmã-de-santo, Creuza de Nanã, filha carnal de Menininha e hoje sua sucessora na casa do Gantois, criticou-o, sutilmente, como é costume entre o povo-de-santo, dizendo-lhe que ela, Creuza, nunca tivera a necessidade de ir à África para aprender o oriqui (a reza da ancestralidade) de sua mãe, o orixá Nanã Buruku. Ao que, respondeu Pai Idérito: "Sim, mas sem ir lá, você nunca vai ficar sabendo quem foi a mãe de Nanã." Nós, pesquisadores sem tato, perguntamos, afoitos: "E quem é a mãe de Nanã, Babá?" Ele deu de ombros, como quem diz: "Ah, pesquisadores..." Isto também é axé, é conhecimento, é poder, é fundamento.

Axé também é a coisa enterrada, objetos de culto escondidos, primeiro da perseguição policial, perseguição do branco, e mais tarde escondidos da curiosidade do olhar profano, do interesse de quem não tem raiz, não tem origem, aquele que é côssi, no linguajar-de-santo.

Axé é sobretudo a casa de candomblé, o templo, a raça, a tradição toda. A matriz fundante de toda uma descendência. Axé é linhagem, é família-de-santo, é saber-se pertencente a uma descendência cuja origem é conhecida e comprovada por registros históricos, pelo trabalho do etnógrafo de outrora, pela prova da fotografia, hoje. Ter axé é ter legitimidade junto ao povo-de-santo.

 

Filiação por feitura é por obrigação

No candomblé, todo iniciado tem seu pai ou mãe-de-santo, e por conseguinte, um avô ou avó-de-santo, bisavô ou bisavó, e assim por diante. Filhos do mesmo pai serão irmãos. Filhos de irmãos serão sobrinhos etc. O parentesco religioso tem exatamente a mesma estrutura do parentesco ocidental contemporâneo não religioso.

Quando um pai-de-santo morre, os filhos devem tirar de suas cabeças a mão do falecido – tirar a mão de vume ou de vumbe, como se diz. Nessa cerimônia, o sacerdote que substitui o falecido passa a ser o novo pai ou mãe-de-santo do órfão. A filiação anterior era por "feitura", por iniciação, esta segunda é por adoção, por "obrigação". "Dei obrigação com Mãe Maria de Oxóssi" significa que passou sua cabeça e seu santo para os cuidados desta mãe Maria. Quando .uma casa perde seu chefe, a sucessora ou sucessor recebe todos os membros da casa em adoção, sem mudança de linhagem, pois a mudança do parentesco religioso, nesse caso, se deu em linhagem direta. Todos continuam pertencendo ao mesmo axé, à mesma casa onde foram iniciados.

Mas as sucessões nas casas-de-santo (que têm conseguido sobreviver à morte do chefe) sempre foram conflituosas, desde as primeiras vacâncias do trono da Casa Branca do Engenho Velho, considerado "o primeiro terreiro"; por morte de suas ialorixás. Conflitos sucessórios na Casa Branca deram origem ao terreiro do Gantois, fundado por Maria Júlia da Conceição Nazaré, e anos depois ao terreiro do Axé Opô Afonjá, fundado por Aninha, ambas filhas da Casa Branca e pretendentes a frustradas sucessões. Num candomblé, quando morre a mãe-de-santo e o filho não concorda com a sucessão, ele busca outro axé, ou funda um outro. Fundar outro axé era fácil no princípio, mas não tanto agora, quando já há uma história, ou uma memória, alimentando o mecanismo de legitimação da origem.

Um filho pode, também, romper com sua mãe quando esta ainda é viva e procurar outra casa para se filiar. Há procedimentos complicados, o oráculo terá que ser consultado, interesses serão pesados etc. De todo modo, pode-se passar de um axé para outro através da "obrigação".

A obrigação, a adoção, pode ser radical e pública, com novos ritos de raspagem, mudanças do orixá da pessoa etc. Pode ser uma obrigação simples, como tomar um banho de ervas sagradas, fazer alguns sacrifícios, dar uma comida à cabeça. Varia muito. Quando uma mãe-de-santo deseja afastar a presunção de alguém que alega ser seu filho por obrigação, quando ela nega uma possível adoção, ela diz: "Da minha mão, ele não tem na cabeça nem um copo d'água".

Até quarenta ou cinqüenta anos atrás, as feituras-de-santo na Bahia envolviam uma série de casas (e em Pernambuco envolvem ainda hoje duas, a da mãe e a do pai-de-santo, que podem ser de origens diferentes). Compareciam mães e pais de diferentes casas e nações – era um momento de confraternização. Cada uma ajudava um pouco. A mãe tinha experiência na iniciação para determinado orixá, por não saber com segurança suas cantigas e preceitos, mandava a filha para ser iniciada em outra casa, ou chamava para o seu terreiro outra mãe-de-santo para ajudá-la a fazer a filha.

No candomblé de hoje, em São Paulo, na Bahia, em Pernambuco, no Maranhão, no Rio Grande do Norte, no Rio Grande dó Sul, a questão da origem parece ser o assunto predileto do povo-de-santo. O tempo todo a legitimidade da origem religiosa é posta em dúvida. Pai Alvinho é quem diz: "Eu fotografo tudo e anoto tudo, tenho todas as datas. Meus filhos podem provar que são meus filhos". Pai Idérito, que não admite a entrada de câmaras fotográficas no seu barracão, autoriza a família do iniciado a tomar algumas fotos em certos momentos da cerimônia pública.

A pesquisa de campo mostrou que são raríssimos os sacerdotes chefes de terreiros de São Paulo que permaneceram filiados ao axé de feitura (terreiro onde foram iniciados), ocorrendo seqüências de rupturas e refiliações que já vêm desde a Bahia, é bom deixar bem claro. Quando um pai-de-santo se afasta de seu pai ou mãe-de-santo e toma a mão de um outro, esta nova mão expressa, como comprova a presente pesquisa, uma mobilidade no campo da legitimação das origens, cuja trajetória é bastante clara, referida a conjunturas históricas que marcam o prestígio maior ou menor de uma nação-de-candomblé em relação às outras. Repete-se aqui, agora no universo do candomblé, o movimento de passagem da umbanda ao candomblé. Primeiro, entre 1960 e 1970, houve a tendência de maior filiação ao angola (que está mais próximo da umbanda), sobretudo o de Joãozinho da Goméia e seus descendentes. Nesse mesmo período foi igualmente expressivo o crescimento do candomblé de predominância iorubana, o de Alvinho d'Omulu, descendente direto da efã do terreiro Axé do Oloroquê da Travessa Antônio Costa, nº 2, Largo da Capelinha, Engenho Velho de Brotas, Salvador, além das várias linhagens gueto a que se filiavam outros pioneiros já citados. Waldomiro de Xangô, o Baiano, dessa mesma origem efã de Alvinho, ao passar para o axé do Gantois, onde teria dado obrigação com Mãe Menininha, arrastou consigo, nos anos 70 e 80, por adoções sucessivas, diretas ou colaterais, duas ou três gerações de iniciados paulistas.

No conjunto das 60 casas de candomblé que estudei em São Paulo, observamos as seguintes situações:

-          -           31 dos chefes foram originariamente umbandistas ou tocaram umbanda por um certo tempo, mesmo depois de iniciados no candomblé;

 

-          -           quatro deles permanecem com toques de umbanda regulares combinados ou alternados com o candomblé;

 

-          -           26 iniciaram-se na nação angola, muito mais próxima da umbanda e com grande prestigio derivado da visibilidade pública e do carisma de Joãozinho da Goméia até sua morte em 1971;

 

-          -           11 continuam na nação angola;

 

-          -           35 foram iniciados numa nação de predominância cultural iorubana (queto, efã, nagô);

 

-          -           45 fazem hoje parte deste grupo iorubano;

 

-          -           27 foram iniciados no queto;

 

-          -           37 são os que hoje estão no queto;

 

-          -           dois foram iniciados em linha direta no Gantois;

 

-          -           12 estão hoje filiados (dez por adoções sucessivas) ao terreiro de Menininha do Gantois.

Em resumo, a trajetória é, ou tem sido, a seguinte: umbanda, angola, queto, queto-Gantois. Um pai-de-santo, conversando comigo sobre o assunto, disse: "Joãozinho e Alvinho fazem, Waldomiro Baiano conserta e Menininha leva a fama. Coitada, ela nem sabe que é mãe do candomblé inteiro". Vamos fazer um pequeno cálculo. Do número de chefes de terreiro hoje filiados a uma nação determinada, subtraio o número de chefes que foram feitos naquela nação e divido esse resultado pelo número dos que se iniciaram. Multiplico o resultado por 100. Isto me dá uma taxa que expressa a direção e a magnitude da mobilidade por nação, uma medida de decréscimo ou crescimento da nação através da adoção; em outras palavras, a medida da mudança de axé, sem considerar as mudanças intermediárias e o fato de que a permanência na nação de origem não é suficiente para indicar que não tenha havido mudança de axé no interior da mesma nação, o que acontece quando se passa para uma outra família-de-santo daquela nação. As taxas calculadas são as seguintes:


Nação                                                            Taxa de mudança
Umbanda                                                                  -89 %       

Angola                                                                                   -58%
Queto, efã, nagô                                                        +27%
Queto                                                                         +37 %
Queto-Gantois                                                           +500 %    


Os dados são eloqüentes ao demonstrar o alcance do prestigio conquistado pelo candomblé gueto em detrimento do candomblé angola, e incisivos ao apontar para a supremacia do gueto do Gantois, que é apenas uma das muitas casas de gueto, mas que é a casa de Menininha. Impossível deixar de lado o fato de que, neste período, Mãe Menininha era uma figura de reconhecimento nacional. Mesmo muito doente nos últimos 20 anos de vida, sua presença na televisão não era rara. Em 1984, em sua última aparição no vídeo do "Jornal Nacional", recostada na cama, as pernas doentes escondidas por uma colcha de renda, na parede um quadro com a estampa de João Paulo II, respondeu sorrindo à repórter que lhe perguntara se ela era católica: "Eu sou católica. Eu sou de orixá, eu sou de Oxum". O Brasil, havia mais de dez anos, aprendera a cantar: "...A Oxum mais bonita, hein, - tá no Gantois... Olorum quem mandou esta filha de Oxum tomar conta da gente. De tudo cuidar... Ah minha Mãe Menininha..." (Prandi, 1990).

A amostra desta pesquisa não é aleatória, não pode ser usada, portanto, para estimar parâmetros. Isto não significa, porém, que não possa ser usada para indicar tendências. Acredito que o candomblé que mais se toca em São Paulo é o angola, mas ele está muito mais presente no interior dos terreiros de umbanda, onde fica e se reproduz dissimuladamente. Mesmo nas casas de gueto, quando há toque freqüente de caboclo, usa-se iniciar o toque de caboclo com um xirê de orixás em angola para depois virar o toque para caboclo. Das 60 casas de candomblé estudadas, em menos de dez não se dá toques para caboclos. Na casa de Pai Idérito*, filho do Gantois e africanizado, não se toca para caboclo. Também não na casa de Sandra de Xangô*, na de seu filho Armando de Ogum*, na de seu neto Reinaldo de Oxalá*, na de Iassessu*, na de Aulo de Oxóssi*, todas envolvidas em um projeto de africanização iniciado há poucos anos, e que optou pela extinção do culto a entidades que não sejam iorubanas. Menos radicais que esses, muitos pais e mães hoje tocam, entretanto menos freqüentemente, para seus caboclos do que costumavam, mas aqui a influência pode vir sobretudo do soteropolitano Axé Opô Afonjá de Mãe Stela; que foi e segue sendo um terreiro-modelo do candomblé gueto para todo o pais. Todos estes participam, cada um a seu modo, de um processo intencional de dessincretização, afastando-se do calendário litúrgico católico e eliminando símbolos e práticas do catolicismo umbandizado. A trajetória da legitimidade vai se desviando da prática do catolicismo, instituição branca que deu disfarce à instituição negra num tempo em que esta era, de fato, só de negros. O candomblé de hoje pode perfeitamente continuar católico, mas já não precisa do catolicismo para ser reconhecido e se reconhecer como religião, agora religião não mais restrita a grupos negros.

O candomblé é todo cheio de idas e vindas. Mudanças bruscas dão-se de uma hora para outra, elementos abandonados são pie repente introduzidos. E essas mudanças são de iniciativa e arbítrio do pai ou mãe-de-santo, que contudo, estrategicamente, sempre afirmará tratar-se de designo do orixá, que mostra seu desejo através do jogo de búzios, o qual só pode ser jogado e interpretado exatamente pelo pai ou mãe-de-santo, o chefe -da casa. Quem não gostar, que mude de casa, que mude de linhagem até.

Fazendo o cálculo do número de vezes que os sacerdotes-chefes desta amostra pesquisada mudaram de pai ou mãe-de-santo (ou por morte ou por ruptura, não importa), chegamos à média de 1,4. Isto sem considerar as mudanças indiretas resultantes de mudanças de axé por que já passaram o pai original, o pai adotivo, a avó etc. Quando um chefe-de-terreiro muda de axé, toda casa muda junto. Os que não concordam procuram outro axé ou então filiam-se ao próprio avô que o pai está deixando, ou ainda a um tio ou outro parente dentro da mesma família.

Wilson de Iemanjá*, por exemplo, foi feito no angola por Gitadê*, filho de Joãozinho. Wilson* saiu da casa de Gitadê*, tocou gueto durante cinco anos com a paternidade adotiva de Ojalarê*. Mas foi voltando ao angola, deixou o Ojalarê*, aproximou-se de seu irmão-de-santo de feitura, Guiamázi*. No dia 18 de fevereiro de 1989, foi a festa de sua obrigação de 14 anos, obrigação já conduzida pela mão de seu antigo irmão e hoje pai-de-santo Guiamázi*, ainda ligado a Gitadê*. Este, para deixar clara sua filiação, cantou uma cantiga de Obaluaiê, orixá de Gitadê*, no momento em que estava trazendo a Iemanjá de Wilson* para dentro do barracão. Em seguida, parou o toque e explicou para a platéia que cantou para Obaluaiê, à entrada de Iemanjá, porque "este é o santo de nosso pai, é em homenagem a ele".

Depois do rum (dança solo do orixá) na nação angola, Guiamázi* fez virar o toque para a nação gueto. Wilson* estava raspado, o que significa que o novo pai-de-santo entendia a obrigação como uma necessidade de "conserto" iniciático, talvez pelos cinco anos de convivência fora do axé e fora da nação. Mas mesmo isto não o desobrigava de tocar para aquela Iemanjá no angola e no queto.

Ainda que haja sempre muitas mudanças de axé, foi possível nesta pesquisa traçar, para a maior parte dos terreiros paulistas estudados, suas linhas genealógicas, que vão dar em um passado remoto, duma Bahia em que o candomblé estava nascendo. Nesse percurso, as famílias-de-santo vão se fazendo, desfazendo, refazendo-se.

A título de demonstração, mostro a seguir a teia de axés de urna iaô (filha-de-santo) de Iemanjá, cujo nome religioso é lá Bemin, e que um dia foi iniciada por Wanda de Oxum* e seu marido Gilberto de Exu*, já nossos conhecidos, e que depois tirou a mão dos que a iniciaram, tomando obrigação com Reinaldo de Oxalá*, que passou, assim, a ser seu pai.

A filha de Iemanjá e suas linhagens

I. A filha-de-santo lá Bemin (Mary Aparecida Ramacciotti) foi raspada por Wanda de Oxum* e por Gilberto*. Wanda* fora feita de Oxóssi por Joãozinho; Gilberto*, confirmado ogã por Diniz da Oxum, filho de Cristóvão, do terreiro do Oloroquê.. Wanda*, porém, foi reiniciada para Oxum por Waldomiro, o Baiano, que tendo sido um dia avo-de-santo de Gilberto*, passou a ser seu pai por obrigação. Como Waldomiro já tinha passado para o axé do Gantois, tanto Wanda* como Gilberto* passaram ipso facto à descendência de Menininha. Há, portanto, três origens aqui: 1) Goméia, angola, pela feitura de Wanda*; 2) Oloroquê, efã, pela iniciação de Gilberto* e de Waldomiro e 3) Gantois, queto, pela adoção de Waldomiro e adoções sucessivas de Wanda* e Gilberto*.

Iá Bemin rompeu com seus pais de origem e tomou, obrigação com Reinaldo de Oxalá*, seu pai adotivo, portanto.

II. Reinaldo de Oxalá* foi iniciado no candomblé por Roberto de Oxóssi, filho de Aníbal de Oiá, por sua vez iniciado por Alvinho de Omulu. Mas foi das mãos de Dagno de Oxumarê que Aníbal recebeu o seu decá (título de senioridade), tendo depois dado sua obrigação de 21 anos com Mãe Juju de Oxum*. Aqui temos mais uma origem e outra que se repete: 4) Oloroquê, efã, pela feitura do avô de Reinaldo*; 5) Gantois, queto; 6) Portão da Muritiba, queto, que são as duas origens de Juju* e que, nesta etapa, entram na história iniciática da iaô de Iemanjá pela obrigação de seu avô-de-santo, por adoção, portanto.

III. Mas Reinaldo de Oxalá* desliga-se de seu pai-de-santo e toma obrigação com Armando de Ogum*.

Armando* foi iniciado por Aligoã de Xangô*, filha de Ajaoci de Nanã*; iniciado por Lendembê de Oxum Ipondá (Justino do Ocupê), feito nos anos 20 por Jidenã em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, onde três municípios vizinhos, Cachoeira, São Félix e Muritiba, formam um celeiro de casas antigas de gueto e de jeje-marrim. Quando Jidenã morreu, Lendembê tirou a mão de vume (mão do falecido) com alguém cujo nome se perdeu na memória, mas quando este de nome esquecido veio a falecer Lendembê tirou a mão de vume com Joãozinho da Goméia, ainda na Bahia. Nessa etapa, temos o reaparecimento de uma origem e o surgimento de outra: 7) Jidenã de Cachoeira, jeje, por iniciação; 8) Goméia, por adoção. Veja-se que, até aqui, a iaô de Iemanjá pode invocar sete axés de origem. Mas a história não acabou.

IV. Armando de Ogum*, atual avô-de-santo de Iá Bemin, tinha muito antes saído da casa de Aligoã*, tendo tomado a mão de Ojalarê*. Ojalarê* é filho-de-santo de Gelson da Oxum, Omilarê (Gelson Martins do Rego), feito no santo em Cachoeira por Jaime de Obá, filho de jeje Enoque. Com a morte de Enoque, Gelson passou para as mãos de Mãe Samba Diamongo (Edith Apolinária de Santana), angoleira saída do Terreiro de Manso Bandunguenque ou "Bate Folha", com quem ficou 25 anos. Com a morte de Samba, 1979, Omilarê deu obrigação no gueto com Nandaré, neta-de-santo de Aninha do Opô Afonjá e, com a morte daquela, com Seu Zequinha do Bate Folha, voltando assim ao seu velho axé angola. Temos, portanto, mais raízes à vista: 9) Enoque de Cachoeira, jeje, em linha direta; 10) Bate Folha, angola, por obrigação, em linha direta e em linha colateral; 11) Opô Afonjá, gueto, por obrigação e em linha colateral.

V. Armando de.Ogum* deixou a casa de Ojalarê* e deu obrigação com Sandra de Xangô*, de quem recebeu o decá, e com quem está até hoje. Sandra* fora feita em São Paulo por Luan, filha de Maria de Xangô, angola, neta-de-santo de Nanã de Aracaju. Mais tarde, Sandra* foi reiniciada por Nádia Adelodê, de Guarulhos, de uma linhagem colateral do Gantois. E depois Sandra* tomou obrigação com o africano Epega Onadelê, membro da Orunmila Youngsters of Indigene Faith of África, de Lagos, Nigéria. Temos então nessa etapa de descrição: 12) Nanã de Aracaju, angola, por feitura em linha direta; 13) Gantois, por obrigação, em linha colateral e 14) África contemporânea, por obrigação, linha direta.

E assim, a filha de Iemanjá, Iá Bemin, é hoje filha-de-santo de Reinaldo de Oxalá*, gueto africanizado, neta de Armando de Ogum*, gueto africanizado, bisneta de Sandra de Xangô*, gueto africanizado, trisneta de apega, descendente iorubano do primeiro templo do deus Orunmilá, o dono do oráculo, criador dos 16 Odus que governam a vida e que permitem a decifração do destino. Ela mudou de axé uma vez, mas, no percurso de sua linhagem, podemos contar sete mudanças, as quais nos dão o número de doze mudanças em cadeia, de 1920 até este momento.

A iaô de Iemanjá pode dizer que tem axé da África atual, do Gantois, do Oloroquê, do Portão da Muritiba, da Goméia, do jeje de Cachoeira, do Bate Folha, de Nanã de Aracaju e do Opô Afonjá. Através dos axés do Gantois e do Opô Afonjá ela pode remeter sua origem à Casa Branca do Engenho Velho, fundante do gueto, e daí até a velha África, que marca os tempos da construção da religião dos orixás pelos africanos escravos, forros e livres no Brasil dos séculos passados.

Ela é branca, como brancos são o seu pai, seu avô e sua bisavó-de-santo. Mas sua africanidade é garantida tanto por aquelas origens passadas como por este esforço presente de religação religiosa com o continente negro. Fecha-se assim o círculo, até que novas rupturas e alianças venham a acontecer. Embora ela possa sentir-se parte de qualquer dessas famílias originárias, caberá a ela valorizar algumas, esconder outras e duvidar das demais. Poderá, inclusive, refazer sua rede em diferentes momentos. No candomblé, nem mesmo os deuses têm uma única origem com aceitação consensual. Nesse sentido, pode-se inclusive dizer que o mito segundo o qual Iemanjá é mãe dos demais orixás, com exceção dos orixás da criação, confio os Oxalás, é falso, uma vez que esse mito, generalizado no Brasil e em Cuba, nunca existiu na África, tendo sido resultante de um engano de registro etnográfico cometido na África pelo coronel Ellis. Nina Rodrigues tomou o mito como verdadeiro, embora não tenha encontrado sinal dele na Bahia, e o publicou. Foi imediatamente republicado em Cuba por Fernando Ortiz. Hoje em dia, há quem acredita ser Iemanjá a mãe dos orixás e há quem negue isso; não existe uma única história, uma só versão. E isto aplica-se ao candomblé como um todo, quer se trate de mito, de rito ou de organização sacerdotal.

O candomblé não passa registro em cartório. E mesmo quando o faz, não o leva muito a sério. Basta que nos lembremos de que a Federação Baiana do Culto Afro-brasileiro, controlada pelos terreiros gueto de maior prestígio da Bahia, entregou à sua mãe Sílvia de Oxalá* do Aché Ilê Obá paulistano o diploma de ialorixá, para, meses depois, durante o IV Encontro Nacional da Tradição e Cultura dos Orixás, que se realizava nas dependências do Opô Afonjá, em Salvador, com delegações de diversas partes do pais, insinuar que diploma não era raiz nem atestado, o que foi decisivo para derrubar Mãe Sílvia* da presidência da representação paulista. A presidência da delegação de São Paulo foi então assumida por um triunvirato composto de representantes de casas paulistas mais antigas e iniciados havia muito mais tempo que os então poucos anos de Mãe Sílvia*. Um par de anos depois deste incidente, em maio de 1990, o jovem terreiro da jovem Mãe Silvia* foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (Condephaat) – a tradição negada pelos membros mais ativos do povo-de-santo foi atribuída através da via oficial. Quem poderá dizer agora que o Axé Ilê Obá, o terreiro do falecido pai Caio Aranha, de desconhecidas origens religiosas segundo a regra do candomblé, o terreiro cuja construção tombada pelo Patrimônio data de 1974 e cuja atual ialorixá não tinha os anos mínimos de senioridade ao assumir o cargo de sacerdotisa-chefe, quem poderá dizer que não é tradicional? Que não tem legitimidade? Que não tem origem, quando já é oficialmente considerado uma origem em si mesmo, numa metrópole onde a tradição tem a data de ontem?

De todo modo, a filha de Iemanjá, cuja teia de axés estamos perseguindo, é parente-de-santo (ruptura não apaga o passado, aprende-se no candomblé) dos chefes de 30 dos 60 terreiros estudados (ver BOX).

Podemos assim verificar que a filha-de-santo lá Bemin tem algum grau de parentesco com os pais e mães-de-santo que chefiam metade dos 60 terreiros paulistas estudados nessa pesquisa. Ela faz parte da segunda e da terceira geração de iniciados em São Paulo. A cada nova ruptura e novos laços que se dão no meio do povo-de-santo, mais amplo ficará o espectro dessa teia de axés.

Certamente essa filha-de-santo desconhece tudo isso. Nem teria ela procurado uma casa para se iniciar, e depois outra para se refiliar, com base nas origens religiosas desses terreiros. Ela está ainda muito distante do ponto a partir do qual um sacerdote ou uma sacerdotisa do candomblé começa a se preocupar com questões de origem e legitimidade.

Em maio de 1989, Reinaldo de Oxalá*, o pai-de-santo de Iá Bemin, iniciou-se para Oxum com o nigeriano de Abeocutá, Adesina Sikiru Salami, residente em São Paulo desde 1983. Nossa iaô de Iemanjá está agora muito mais perto da África.

Origem, publicidade e legitimidade

No candomblé, a idéia de legitimidade deriva da origem religiosa da casa que, por sua vez, depende de um reconhecimento público dos terreiros fundantes das linhagens, reconhecimento este que trabalha com critérios de seleção atribuídos pelo mundo exterior ao terreiro.

Os terreiros "fundantes" são, em princípio, os antigos e originais. Mas isto não basta. É preciso que esses terreiros – dentre muitos outros tão antigos e originais quanto eles – tenham atraído a atenção dos que transitam nos espaços públicos da sociedade, e que na Bahia e no Recife das três primeiras décadas de nosso século foram – e ainda continuam a ser – as academias de ciência, as artes, a imprensa, o "mundo culto", digamos.

É interessante como toda uma linhagem considerada bastarda pode, a qualquer momento, vir a fazer parte daquelas consideradas as mais legítimas. Muitos pais e mães-de-santo de São Paulo, que vêm passando por um processo de mobilidade social ascendente, aprendem três coisas: ou provam sua filiação original, ou se filiam por "obrigação" a um terreiro de linhagem prestigiada, ou lutam para ser "fundantes" de seus próprios axés.

O reconhecimento de um axé ocorre quando parte de seus múltiplos segmentos ganha notoriedade fora do espaço do terreiro.

As fontes de legitimação podem ser: o interesse acadêmico despertado, ó carisma do pai ou mãe-de-santo, o sucesso do sacerdote no mercado religioso, sua visibilidade na mídia. Não são quatro alternativas. Hoje, são quatro condições necessárias, mas ainda assim não suficientes. Um pai-de-santo precisa ter filhos-de-santo, muitos filhos-de-santo, sem os quais ele é incapaz de rotinizar e reabastecer constantemente sua aura sacerdotal, filhos sobre os quais exerce sua dominação, realiza seu talento estético e exercita sua majestade. Esse pai-de-santo tem que estar, ao mesmo tempo, voltado para dentro e para fora do terreiro.

A maior parte dos pais e mães-de-santo não tem percepção alguma do que seria essa legitimidade, tampouco a têm os iaôs, em sua esmagadora maioria. São mães e pais-de-santo desconhecidos, o que não desmerece seu papel religioso. Na verdade, enquanto esses pais e mães-de-santo atendem a uma clientela e a um grupo de fiéis desinteressados da vida pública, não faz sentido algum a noção de legitimidade pela origem.

O sacerdócio no candomblé também é um meio de mobilidade social ascendente – como foi o clero católico para muitas famílias pobres com projetos de ascensão para seus filhos e como o é toda e qualquer liderança religiosa. Assim, aqueles que começam a ser bem-sucedidos socialmente (o que implica clientela) tendem a se envolver na busca de prestigio que pressupõe uma pureza original, a qual vem do passado (a África através da Bahia) ou do presente (a África ela mesma, a de hoje). No processo de legitimação que foi se firmando em São Paulo desde o final dos anos 70, a maioria dos sacerdotes que se deixa envolver nesse. processo é forçada a peregrinar à África, dar obrigações e tomar cargo nos templos (paupérrimos, aliás) da Nigéria e do Benin, repetindo a saga de Martiniano do Bonfim, da Bahia, e de Adão, do Recife, entre outros "grandes" dos anos 30.

Isto é africanizar. Mas africanizar não significa nem ser negro, nem desejar sê-lo e, muito menos, viver como os africanos. Dos nossos 60 terreiros, 27 são chefiados por brancos. Destes, nove ostentam títulos religiosos conquistados em um ou mais templos nos países africanos que contêm os povos iorubanos.

Africanizar significa também a intelectualização, o acesso à leitura sagrada contendo os poemas oraculares de Ifá, a reorganização do culto conforme modelos ou com elementos trazidos da África contemporânea (processo em que o culto dos caboclos é talvez o ponto mais vulnerável, mais conflituoso); implica o aparecimento do sacerdote na sociedade metropolitana como alguém capaz de superar uma identidade com o baiano pobre, ignorante e preconceituosamente discriminado.

Cada um, a partir da África e fora do circuito dominante do candomblé baiano, reconstrói seu terreiro selecionando os aspectos que lhe pareçam mais convenientes ou interessantes. Nesse sentido, africanização é bricolagem. Não é a volta ao original primitivo, mas a ampliação do espectro de possibilidades religiosas para uma sociedade moderna, em que a religião é também serviço e, como serviço, se apresenta no mercado religioso, de múltiplas ofertas, como dotada de originalidade, competência e eficiência. Se seguirmos os passos daqueles que mudam de um axé para outro, veremos com expressiva freqüência a busca de um novo terreiro que seja capaz de superar o anterior em termos de sua publicidade, fama, prestígio. Assim, mudança de axé, mudança de linhagem, significa também a procura de maior legitimidade para a opção religiosa e, junto com isto, um esforço de mobilidade ascendente que é mobilidade social.

A africanização como processo de religamento do candomblé à África contemporânea é uma forma que este novo candomblé de São Paulo encontrou para se libertar do velho e original candomblé baiano e até mesmo supera-lo, criando sua própria originalidade, legitimidade. Necessita-se de uma medida nova de importância e prestígio, e que não pode ser a antigüidade. Para completar esse movimento de autonomização em relação às velhas e tradicionais casas da Bahia, o candomblé de São Paulo tem assim necessariamente de reinventar-se também como tradição. Nesse sentido, o tombamento do nada tradicional Axé Ilê Obá pelo Condephaat é escancaradamente emblemático.

(Recebido para publicação em agosto de 1990)

Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

ANEXO (Box)

 

-Abdias de Oxóssi*, que vem originalmente do Bate Folha, é seu tio em terceiro grau;

 

- Ada de Obaluaiê*, feita por Alvinho e adotada por Baiano (que teria lhe dado, a seu pedido, a obrigação em efã e não em gueto), é sua tia duas vezes em primeiro e segundo

 

- Adilson de Ogum* (falecido em 6/10/89) foi seu tio também, pois ele era filho de Toloquê, que é filha de Joãozinho e depois de Baiano;

 

- Aligoã de Xangô* é sua avó pela feitura de Armando*, seu atual avô adotivo;

 

- Ajaoci de Nanã* é pai de Aligoã*, avô de Armando*, por conseguinte, seu bisavô;


- Armando de Ogum* é seu avô adotivo;

 

- Aulo de Oxóssi* é primo distante por suas origens angola que vem de Manodê* e par sua adoção (contestada por alguns) pelo Opô Aganju que é dissidência do Opô Afonjá baiano;

 

- Cidinha de Iansã*, adotada por Kajaidê* é um parente distante par adoções sucessivas que os ligam ao Gantois;

 

- Deusinha de Ogum*, filha de Alvinho, é sua tia-avó, por adoção;

 

- Doda de Ossaim* também é seu parente, já que é filho adotivo de Kajaidê*;

 

- Francisco de Oxum*, filho de Merucá*, é parente bem distante;

 

- Gabriel da Oxum*, descendente em linha direta de Maria Neném, é seu parente distante por antigos laços das famílias do angola, embora ambos sejam queto;

 

- Gilberto de Exu* é seu pai original e parente distante pela filiação a Baiano;

 

- Wanda de Oxum* é sua mãe original e parente também por parte da linhagem indireta do Gantois que passa por Baiano;

 

- Isabel de Omulu*, mãe carnal e irmã-de-santo de Wanda*, é sua tia de santo, por parte da linhagem da Goméia;

 

- Gitadê* é seu tio direto e parente distante por parte da Goméia;

 

- Guiamázi*, filho de Gitadê, é seu primo em primeiro grau;

 

- Idérito de Oxalá* é parente distante, pelo Gantois;

 

- João Carlos de Ogum*, filho de Alvinho, é seu tio-avô;

 

- José Mauro de Oxóssi*, filho de Alvinho, é também seu tio-avô;

 

- José Mendes* é seu parente pelo Portão de Muritiba;

 

- Juju de Oxum* é sua bisavó, por adoção;

 

- Kajaidê* é parente distante pelos lados do Gantois;

 

- Manodê* é sua tia-trisavó, par adoção, por parte de seu avô adotivo;

 

- Matamba*, irmão adotivo de Ojalarê*, é seu tio-bisavô por adoção;

 

- Meruca* é parente muito distante;

 

- Ojalarê* é seu bisavô, por adoção de Armando*;

 

- Pérsio de Xangô* é seu,parente através de Juju*, de quem ele é irmão, pelo Portão da Muritiba e pelo Gantois;

 

- Quilombo* é seu tio, pela Goméia;


- Reinaldo de Oxalá* é seu pai adotivo;

 

- Sandra de Xangô* é sua atual bisavó adotiva;

 

- Tonhão de Ogum*, filho de Pérsio*,é seu, primo por adoção pelas linhas do Gantois é do Portão de Muritiba;

- Wilson de Iemanjá*, filho de Gitadê* e depois irmão e filho adotivo de Guiamázi*, é seu primo em primeiro grau pela linha direta da Goméia.

 

NOTAS

1 - A palavra nação, no candomblé, expressa uma modalidade de rito em que, apesar dos sincretismos, perdas e adoções que se deram no Brasil, e mesmo na África de onde procediam os negros, um tronco lingüístico e elementos culturais de alguma etnia vieram a prevalecer (Lima, 1984, pp. 11-26).

2 - Para uma visão dos diferentes arranjos que compõem uma dada "nação" de candomblé, recomendo uma leitura de Lima, 1984 (gueto, angola, jeje e de caboclo, na Bahia); Moda e Lima, 1985 (xangô pernambucano); Ferretti, 1985 e Femetti, 1986 (tambor de, mina ou jeje-mina, do Maranhão); Corrêa, 1988 (batuque gaúcho).

3 - Chamo-os de terreiros de "mais prestígio" pelo simples fato de serem, ainda hoje, os mais lembrados por aqueles que circulavam, naquela época, nos meios do povo-de-santo no Rio de Janeiro.

4 - A pesquisa sobre o candomblé no Rio de Janeiro é bastante limitada De uma enormidade de terreiros importantes na história do candomblé no Rio, apenas dois mereceram estudos detidos, o da Goméia (Cossard-Binon, sal.) e o Opô Afonjá (Augras e Santos, 1983). Há uma certa disputa sobre qual dos dois Opô Afonjá, o do Rio ou o de Salvador, teria sido fundado primeiro por Mãe Aninha.

5 - Há informações interessantes sobre os baianos fundadores dessas casas, no Rio, em depoimentos e comunicações publicadas no livro organizado por Lima (1984). A primeira referência a Joãozinho da Goméia que encontrei na literatura está em Landes (1967, p. 230), que também se refere a Ciríaco e Bernardino do Bate Folha. Ruth Landes os conheceu em 1938, em Salvador.

6 - Este trabalho obriga-me a citar algumas dezenas de nomes de pais e mães-de-santo. No presente texto, todo nome acompanhado de um asterisco indica tratar-se de sacerdote chefe de terreiro localizado na área metropolitana de São Paulo e que foi incluído na pesquisa. Para simplificar, uso aqui apenas o nome pelo qual eles são popularmente conhecidos, mas seus nomes civis e o nome, endereço e nação de seus terneiros podem ser encontrados no artigo "Deuses Tribais de São Paulo" (Prandi e Gonçalves, 1989a). No caso de sacerdotes que não compõem a amostra de São Paulo, procurei fornecer o nome civil, sempre que me foi possível descobri-lo.

7 - Barco de iaôs é o conjunto de iniciados recolhidos e raspados numa mesma leva. Um barco de iaôs pode ter desde um noviço até vinte ou mais. Em São Paulo, dois ou três são considerados um bom número por muitos pais-de-santo. Um barco grande tem a vantagem de cotização das despesas da festa que encerra a feitura, mas exige instalações espaçosas no terreiro. Em cada barco estabelece-se uma hierarquia, na qual o primeiro a entrar no roncó (clausura) e a ser posteriormente raspado e apresentado ao público na "festa do nome" tem precedência ritual sobre o segundo, que tem precedência sobre o terceiro e assim por diante. Há nomes para os postos na hierarquia do barco. O primeiro é chamado dofono, o segundo, dofonitinho, o terceiro, forno, e, sucessivamente, fomutinho, gamo, gamotinho, domo, domutinha, vito e, o décimo, vitutinho. É comum alguém se referir a outro dizendo: "Ela é minha dofona; ele é o gamo do quarto barco de meu pai". Também é freqüente a incorporação do nome da ordem de barco no nome do iniciado, como é o caso de Tata Fomutinho. O dofono do primeiro barco de uma casa é também chamado rombono. Ver Lima, 1984, pp. 66-76.

8 - Por estranha ironia, a popularidade e o reconhecimento público de pais e mães-de-santo costumam vir à tona na ocasião de seus enterros. Como aconteceu com Aninha e Senhora do Opô Afonjá, com Adão do Recife, com Menininha Uma pesquisa em antigos jornais atesta como esses sacerdotes e sacerdotisas vão para as primeiras páginas dos jornais locais ao morrer, no caso de Menininha, para a televisão por todo o país. Quando Nanã faleceu, os jornais de Aracaju puseram o fato nas manchetes principais da primeira página. E é também interessante que, a cada falecimento de uma dessas grandes personalidades públicas do candomblé, alguém escreverá que o candomblé está no fim. Isto vem desde os anos 30 (ver Fernandes, 1937).

9 - Ver Cavalcanti, 1935. Mãe Das Dores aparece citada a seguir em Fernandes, 1937; Lima, 1937; Motta, 1980; Segato, 1984; Carvalho, 1984 e 1987, Brandão, 1986; Prandi e Gonçalves, 1989a e 1989b. Em 1980, Mãe Maria Das Dores já transferira seu terreiro para São Paulo. Em todos esses títulos referidos, o citado Pai Adão e seu terreiro de Iemanjá, onde Mãe das Dores foi por muito tempo, segundo o costume pernambucano, mãe-de-santo coadjutora, são os protagonistas primeiros.